Friday, December 30, 2011

A “deusa” razão, as rotas do barco e o rodízio entre capitães

A razão duvida de tudo, mas tem uma fé cega em si própria. Tudo aquilo que está fora de seu campo de observação, tudo que não pode ser percebido nem mensurado pelos cinco sentidos ou pela tecnologia que os amplia, a razão não reconhece que existe. Todas as tradições e sistemas que lidam com tais elementos são desprezados pela razão. Ela se comporta como um adolescente deslumbrado com as façanhas que se descobre capaz de realizar, sem uma percepção clara de seus limites, nem do dano ou bem que tais proezas trazem para o seu utilizador, o homem.

A razão se crê onipotente na medida em que considera impossível tudo o que contraria suas leis. A razão se acha onisciente na medida em que nega a existência do que não pode ser explicado pelos seus princípios. Ela procura substituir Deus (empregue o nome que quiser), buscou libertar o homem das prisões religiosas que passaram a dominar as ligações com o divino, e ao negar a existência de tudo que está fora de sua de sua compreensão, condena o homem a novas prisões. Talvez com a maturidade a razão venha a entender muitas das coisas que por enquanto ignora, dissolvendo suas próprias prisões e reaproximando o homem do divino.

O mundo é o barco pelo qual o homem navega em si mesmo. Ter apenas a razão ao leme significa fazer sempre as mesmas rotas, visitando sempre as mesmas ilhas, ignorando continentes inteiros. Através da razão o homem neutralizou as ameaças da natureza à existência dele, ao menos enquanto catástrofes naturais não acontecem para relembrá-lo da diferença de poderes. Mas as proezas equivocadas da razão trazem novas ameaças à sobrevivência de seu utilizador.

A razão não é a única disponível para conduzir o barco. Ela é a mais eficaz para fins de sobrevivência, que mudam de acordo com a época: um dia significaram saber caçar e plantar, hoje significam saber ganhar dinheiro. Mas sobreviver é diferente de existir em toda sua plenitude. As proezas acertadas da razão movimentam o barco nessa direção, mas elas não podem navegar nos mares que a razão ignora, por onde os caminhos rumo a uma existência plena continuam, sem talvez jamais serem completados, mas cada centímetro de avanço valendo muito a pena: significam se aproximar do divino.

Tais avanços exigem outros comandantes para o barco, outras formas de usar a mente, como o sonho, o delírio, o transe provocado pela meditação, rezas, jejuns, dança, música ou seja qual for a forma de arte, que pode ao mesmo tempo se valer da razão e escapar das suas leis e prisões, fenômeno normalmente mais intenso nos criadores/praticantes das artes, exigindo grande concentração de seus espectadores/consumidores para alcançar um efeito semelhante. Os estados alterados de consciência provocados por algumas drogas podem ser bastante proveitosos nesse sentido, embora (talvez justamente por isso), seu abuso possa limitar perigosamente os poderes da razão.

Essas rotas de aproximação do divino permanecem essencialmente as mesmas em todas as épocas. Elas são freqüentemente inúteis para fins de sobrevivência: nesse campo, a razão e suas proezas acertadas permanecem imbatíveis. Por isso não vale a pena tentar ter apenas um comandante no barco o tempo todo. Melhor tentar refinar o rodízio entre capitães, fazendo a embarcação navegar pelos diversos mares, ilhas e continentes, tarefa para uma vida inteira, talvez mais. Missão impossível se acreditamos na onipotência e na onisciência da razão, ou se esquecemos de zelar pelo seu bom funcionamento.