Sunday, March 22, 2015

A presença ausente

A fome de escrever toma conta de você. A energia é intensa; o tema, indefinido. Você sente vontade de trabalhar com a linguagem, com o maior foco de que é capaz, durante 45 minutos. Você sente que, ao mergulhar nesse processo, você emergirá um novo homem.

Não há tema. Não há uma estrutura prévia te indicando o caminho. Há cenas, pedaços de memória, propícios à uma análise pragmática, no intuito de identificar falhas, propor soluções, melhorar a tua performance. Isso pode ser feito, e será. Mas não agora.

Agora você usa a linguagem para se aproximar de um mistério. Um mistério para o qual a linguagem aponta; um mistério no qual a linguagem te impede de penetrar. Você está olhando para ele. Você quer mergulhar nele, mas não sabe como.

É possível fazer algo sem saber como fazê-lo ? Sem qualquer espécie de método ou instrução? É possível sondar um caminho diante do insondável? É o que você tenta fazer agora. Mas, antes de tentar, você já sabe que a tentativa está condenada ao fracasso. O que não te impede de continuar tentando.

Algo te pede para continuar tentando. Algo na tua pele te impele a continuar tentando. Algo que não se contenta, que te movimenta, que está contido em você, mas que você não pode conter. Algo muito maior do que você, embora você o perceba apenas como o arrepio na pele que te impele a escrever.

Você escreve. Você crê. Você vê. Mas você não consegue descrever. Você assiste esse algo crever lentamente, no sentido francês, na tua mente. Fica a memória de uma presença, agora ausente. Uma presença que não depende de crença, nem de visão, nem do que se sente. Uma presença contida na mente, mas que a mente não pode conter. Ou será que é a mente quem está contida nessa presença?

Você matou a fome de escrever.