Sunday, March 19, 2006

Malandragem e Responsabilidade

"Se eu precisar algum dia, de ir pro batente, não sei o que será... pois vivo na malandragem, e vida melhor, não há!" Este sambinha me vem à mente nos momentos que reservo para ficar à toa, na sinuca ou no dominó, acompanhado de uma loira gelada e dos colegas de ócio relaxante. "Estes momentos são essenciais para a manutenção do equilíbrio psicológico do cidadão", já cansei de dizer isso, para os outros e para minha consciência, quando há tantas tarefas por fazer e estou altamente atarefado fazendo nada. Nada de responsáel, melhor dizendo, chamar de "nada" algo a que dedico tanto tempo prazeroso seria uma injustiça. Durante muito tempo, busquei o ponto de equilíbrio entre a malandragem e a responsabilidade. Os mais chatos diriam que se trata de equilibrar água com fogo, ou, pra citar outro sambinha, que "o sol não pode viver perto da lua". Mas o que é a vida, além de um equilíbrio entre forças antagônicas ? Equilíbrio idealmente falando, porque o que mais ocorre é um dilema, seguido de exageros para um lado ou outro. E, de fato, se você quiser ser excepcional em algo, terá que optar por ele em detrimento do seu oposto.

Para quem tem ambições mais modestas, a combinação entre os opostos torna-se mais viável. Ainda difícil, porém, já que é bem fácil perder o referencial de equilíbrio, e escorregar além da conta para um dos lados. O conhecimento popular afirma que "tem hora pra tudo", basta saber administrar o tempo adequadamente. Será ? Mesmo as pessoas bastante organizadas, que encontram tempo para muitas atividades diferentes, provavelmente sentem falta da imprevisibilidade da desorganização, das agradáveis surpresas de caminhar ao sabor do vento, algo que uma agenda rígida demais não pode proporcionar.

Talvez o calor da malandragem transforme a água da responsabilidade em vapor. Talvez o vapor só vire chuva quando a vida assim exige, naqueles momentos em que paramos para repensar o caminho que está sendo trilhado. Ou talvez tenhamos um São Pedro dentro de nós, capaz de combinar o calor e a chuva com sabedoria. Talvez ele esteja dormindo, e não acorde com nosso chamado de leitura de manuais de fórmulas de como agir. Talvez não haja fórmula para acordá-lo, e cada um tenha de resolver sozinho esta equação do 7° grau, chegando a diversas soluções. E talvez a solução seja a permanente revisão da equação, aprimorando-a para os vários momentos da vida.

Sunday, March 05, 2006

Quinta-feira pós carnaval, aula de literatura portuguesa. A professora tinha pedido para procurar cantigas de amor, de escárnio, de amigo, de mal-dizer... estamos estudando o Trovadorismo. Eu, como bom folião, logicamente nem toquei em livros durante o carnaval. Eis que ela começa a chamar um por um, perguntando sobre a pesquisa:
- E você, Bernardo, o que procurou ?
- Bem professora, devo reconhecer que não procurei nada, porque priorizei o carnaval em detrimento dos compromissos acadêmicos.
(risadas abafadas se espalham pela sala)
- Ah é, né ? Pois então você vai fazer uma cantiga de amor, tendo como tema o carnaval, para próxima aula.
Que maravilha! Fazer a cantiga nem foi problema, a bronca foi ir pra ufpe num sábado, pra ter aula das 7 às 13h, já derrubado pela virose pós carnaval. Mas consegui, heroicamente, honrar meu compromisso.
Eis a cantiga:

Nada além de um devaneio

Tantas ladeiras para fugires do meu olhar
agitado como um frevo, a te buscar na multidão
O calor não incomoda quando noto a tua mão
empunhando o estandarte do bloco que está a tocar
"Você diz que ela é bela, ela é bela sim senhor..."
Tão bela que não faz idéia de como é grande o meu amor
E continua, majestosa, com seus divinos passos a me maltratar

Deus, como queria, a ti na dança me igualar
Fazer o povo parar para acompanhar nosso gingado
Faria tudo para me livrar destas pernas de desengonçado
E contigo arrancar aplausos e assobios da multidão a gritar
Talvez assim olharias pra mim com algum desejo...
E quem sabe, algum dos passos terminaria num beijo
E Olinda ficaria pequena, para tanta alegria abrigar

Sei, no entanto, que isso nunca passará de um devaneio
Me contento em te admirar com o fascínio que teus encantos exigem
Trato a ferida em meu peito com algumas bebidas que dão vertigem
Espero você terminar, e à casa retornar em seu tranquilo passeio
Também eu retorno ao lar, cambaleando pelo álcool e pelo vazio
que tua ausência me traz à alma, soprando-lhe um vento cortante e frio
que suportarei até minha morte, ou até tua morte, o que vier primeiro
Mas disso, ó minha amada, jamais saberás; não te trarei nenhum receio

Wednesday, March 01, 2006

Laboratório

Se não conseguimos expressar uma idéia com palavras, será que tal idéia de fato existe dentro de nós ? Às vezes ocorre a sensação de que compreendemos algo, mas na hora de transformar este algo em palavras, não conseguimos. Há quem afirme que palavras são a expressão do pensamento; se uma idéia não pode ser comunicada (transformada em palavras), é porque ela não está completa, madura ou clara o suficiente; ainda não existe como deveria.

O que é um sentimento ? Uma variação biológica que produz sensações ? Será que idéias e sentimentos não passam de partículas microscópicas atuando no cérebro, gerando este ou aquele efeito ? Ou existe o tal mundo das idéias, a alma, e as variações biológicas não passam de indícios do que acontece neste mundo inacessível aos sentidos ? Existindo um, ou outro, ou os dois sendo a mesma coisa, que regras regem este laboratório de idéias e sentimentos ? Quantas vezes uma idéia ou sentimento aparece de repente, do nada, como uma paisagem revelada pelo desaparecimento súbito da cortina que a escondia ? E até onde somos capazes de mexer nessas cortinas ?

"A luz negra de um destino cruel / Ilumina o teatro sem cor / onde estou desempenhando o papel / de palhaço do amor". O que foi preciso para que este verso magistral aparecesse na mente de Nelson Cavaquinho ? Um destino generoso, que jogou a cortina longe com um vendaval de inspiração ? Ou será que a cortina foi aberta pouco a pouco, à custa de muitas cervejas e guardanapos de bar ? É um mistério, ninguém sabe onde termina a inspiração e começa a transpiração. Quando desvendarem os mistérios do tal laboratório, se é que um dia o farão, a humanidade ganhará muito em conforto e bem-estar. E perderá a mesma coisa em fascínio e aventura. Haja tecnologia para driblar tanto tédio.