Wednesday, April 30, 2008

As Reticências de Renato

Já tinha um tempo que Renato vinha tentando escrever textos afirmativos, daqueles preto-no-branco, sem espaço para vaguezas. O problema é que vaguezas eram só o que ele tinha. Isso já ficava claro pelos cumprimentos no trabalho:

-Bom dia, doutor Renato!
-Bom dia...

Aos 40 e tantos, os colegas de Renato eram todos afirmações exclamativas: salários altos, carros do ano, parceiras gostosas. Renato também ganhava bem, mas não trocava de carro há mais de 5 anos, para irritação de sua filha adolescente:

-Me deixa um quarteirão antes, que eu não vou chegar no bar nessa banheira velha.
-Tudo bem...

A vida de Renato seguia a cartilha com primor: um bom emprego, uma esposa carinhosa, uma filha estudiosa e chateosa como a idade manda. Mas nosso doutor, por mais que tentasse, não conseguia escrever um texto afirmativo, não conseguia se afirmar diante da vida. Sobravam reticências onde faltavam conclusões:

-Querida, o leite está frio...
-Amor, eu sei que você consegue! Repita comigo: O leite está frio!
-Eu acabei de dizer, ele tá frio...
-Não! Pare com essas malditas reticências! Diga que a porcaria do leite está frio! F-R-I-O! Se aprume, ômi!
-Perdi a vontade de beber leite... - disse nosso doutor, se voltando para seu texto incompleto.

Ele estava intrigado com a própria incapacidade conclusiva. Tentou escrever frases curtas soltas, só pelo ponto final: "The book is on the table" - e quando ele colocava o ponto final, a mão tremia rapidamente e lá estavam os dois infames pontinhos ao lado. "Eu não consigo..." - e nem ao escrever a constatação de um fato conseguia evitar as malditas reticências.

Desanimado, Renato foi pensar na vida caminhando pelo bairro. Talvez fosse uma questão de dar ordens. Ordens exigem uma exclamação, no mínimo um ponto final. Mas o doutor era um cara politizado, avesso à exploração do homem pelo homem. Quem ele iria comandar? Sua esposa não se sujeitaria, sua filha muito menos. Foi aí que Renato teve um lampejo exclamativo:

-Mas é claro, um cachorro!

Dirigiu-se empolgado ao centro de adoção de cães. Logo ao entrar teve o olhar fisgado por um cãozinho que não parava de andar em círculos, numa eterna caça ao próprio rabo. Indicou-o ao vendedor, que ordenou:

-Quieto, cãozinho! - o vendedor abrira a gaiola com a coleira na mão, mas o cãozinho não parava de andar em círculos. O vendedor gritou duas, três vezes, mas o pequinês nem mudava a marcha. Renato ficou impaciente:

- Vamos lá, meu chapinha... - no terceiro instante de pausa representado pelo último pontinho, o cãozinho parou. Parou e ficou olhando para Renato, com a língua de fora, abanando o rabo, satisfeito. O doutor pegou a coleira do vendedor, o pequinês saiu da gaiola na direção de seu novo dono.

Chegando em casa com seu novo amigo, Renato correu para o seu texto. Constatou que continuava incapaz de evitar as reticências. Mas entendeu que elas podiam fazer com que sua estória parasse de andar em círculos, como fizeram com seu cãozinho, a quem resolveu chamar de Reti...

Thursday, April 24, 2008

Malandros Otários

Procurando por programas de gravação de audio na web, me deparo com um de nível profissional, disponível gratuitamente para teste: depois de cerca de um mês você precisa registrá-lo para continuar funcionando, o que implica em pagar 25 dólares. Mas eu sou um internauta ixperto, com mais de 10 anos pegando onda nas praias virtuais, sem nunca reduzir minhas modestas economias. Fui atrás de um cracker para desbloquear o programa, uma malandragem virtual poupadora de verdinhas. Acontece que o cracker que baixei era na verdade um vírus, que lascou o meu pc e me fez gastar 60 reais para consertá-lo, mais do que o custo para registrar o programa oficialmente.

Eu fiquei com tanta raiva de ter feito tamanho papél de trouxa que adoeci, a desarmonia psíquica derrubou meu sistema imunológico. Aí fiquei pensando que conquistei meus maiores troféus de otário justamente na busca das vantagens malandrosas. Existem os inocentes que não percebem os golpes alheios, tornando-se alvo preferencial dos tubarões. E existem as sardinhas que se acham tubarões, e vivem a tomar caldo das jogadas em que se arriscam.

Eu já passei pelos três papéis. A condição de inocente é frustrante, ninguém gosta de ser passado para trás. Mas através dos fumos que levamos vamos ampliando nosso repertório, o que nos impede de cair nos mesmos trambiques (embora algumas pessoas fujam a essa regra), e permite aplicá-los no otário mais perto, seguindo a moral do mundo livre, de acordo com Fred 04: "ou você explora o próximo, ou o próximo é você". Ser tubarão é divertido, até os outros descobrirem. Os que sabem da sua condição de vigarista tendem a se afastar, e a alertar os incautos sobre suas patifarias. Cedo ou tarde todos saberão de que se trata de um pilantra, e aí as coisas vão ficar feias pro seu lado.

O outro problema é que todo tubarão é uma sardinha em potencial. Basta um erro de avaliação, uma falha em perceber o preju disfarçado de lucro, e tchibum! - lá vai o ixperto levar caldo da própria ixperteza. É mais negócio, portanto, usar a malandragem para se defender, e não para atacar. Como já disse Jorge Ben: "Se o malandro soubesse como é bom ser honesto, seria honesto só por malandragem".

Sunday, April 13, 2008

Bloqueio Criativo

Basta escrever meio verso
para a mente dizer que está péssimo
que pioro idéias que já tive.

Procuro pelos mestres seletos
suas lições me soam como tcheco
nenhum sentido me atinge.

Dormência no ouvido interno
Frequência perdida no aéreo
Nervoso que nada imprime.

Wednesday, April 09, 2008

Quebra de Mecanizações

Tem horas que fico enjoado do meu jeito de falar. A música da fala, as entonações, as subidas e descidas, tudo isso fica tão mecânico, tão automático, que cansa. E aí o falar sai do prazer para o fardo, terminando o quanto antes, como toda obrigação inadiável. E eu lembro bem da satisfação de brincar com as teclas verbais, compondo frases que soam bem aos ouvidos. tornando muitas conversas corriqueiras um momento de deleite. A lembrança do que falta só incomoda quando já se teve.

Eu tive a sorte poder quebrar essa mecanização 2x por ano, quando viajava para passar as férias com minha família em Belo Horizonte. As brincadeiras com meu sotaque nordestino me levaram a mudá-lo nessas ocasiões, trocando o "ti" e "di" por "tchi" e "dchi", e o "esse" chiado pelo sibilado. Era bem divertido, me permitia degustar as palavras de outro jeito, e ao voltar para meu sotaque natural, a quebra da mecanização também lhe dava um sabor especial.

Com a adolescência e suas demandas de afirmação de identidade, mudar o sotaque me parecia falso, uma demonstração da insegurança que eu queria combater. Abandonei as quebras, embora notando que meu falar nordestino dirigido à minha família do sudeste não era exatamente o mesmo do praticado com meus conterrâneos. As quebras ficaram restritas às imitações caricatas dos outros sotaques, brincadeira que ainda hoje me diverte um bocado, não dispenso uma oportunidade de falar bobagem em carioquês.

Descobri uma nova quebra falando inglês. Me divirto conversando, lendo textos em voz alta, e noto que em inglês eu faço menos rodeios, e me sinto mais à vontade para expressar certas idéias. É como se em português eu ignorasse as idéias comuns, buscando as brilhantes, enquanto que em inglês as idéias comuns me soam boas de serem ditas.

Pertencer a um lugar, a um sotaque, à uma cultura, traz mais ônus do que bônus? Me parece que quem está muito preso na própria sente dificuldade em apreciar outras. E quebra mecanizações com muito menos frequência.