Sunday, December 21, 2008

Praias, ilhas e travessias

Fiquei empolgado quando soube do encontro dos meus antigos colegas da 8ª série. Algumas figuras eu não via desde aquela época, dez anos atrás. Fazendo um retrospecto da minha vida escolar, vejo que com nenhuma outra sala eu tive uma identificação tão forte: foram 8 anos estudando juntos, num colégio de turmas pequenas, onde todo mundo tinha um grau mínimo de proximidade. Olhando daqui do presente para aqueles momentos do passado, eu tinha a sensação de ter fortes vínculos com todos os elementos daquela sala, mesmo aqueles que, na época, não faziam parte do meu círculo de relações.

Ao chegar no bar, a mesa já estava cheia. Foi ótimo rever figuras tão distantes no tempo. Mas, passado o momento "como tu tás? tás fazendo o quê da vida?", me veio a sensação de que já não havia mais nada a dizer, para a grande maioria dos presentes. Os grupos de maior afinidade da época relembravam estórias divertidas, casos curiosos... eu não me sentia parte de nada daquilo. Percebi que, quanto maior a distância no tempo, mais rosadas ficam as lentes com que eu tendo a enxergar o objeto: eu sentia uma forte conexão com o povo daquela sala de tantos anos, suficiente para ficar bem entusiasmado com as possíveis reuniões da galera, que nunca aconteciam.

Quando enfim aconteceu, o encontro trouxe um certo desapontamento. Parecido com o voltar, vários anos depois, ao ponto do qual vi meu pai saltando para o mar. Na época, a altura me parecia equivalente ao sétimo andar de um prédio. Anos depois, constatei que a altura do inesquecível salto não era maior do que aquelas casas de brinquedo para crianças, com balanços e escorregador. O que parecia épico, mágico, se revelou corriqueiro; tanto o salto quanto a sala brilhavam muito mais nas memórias nutridas pelo tempo do que na realidade oferecida pelo presente.

A correnteza do tempo parece levar a praias desencantadas, deixando para trás, distantes, as ilhas do sonho onde o fluxo ainda está começando, devagar, tão devagar que nem nos damos conta. Ao mesmo tempo, a correnteza parece dar mais carga nos trabalhos de edição das memórias da ilha. Quando olhamos, das praias, para as ilhas, tendemos a enxergá-las através dos binóculos da nostalgia, que deixa de lado as áreas escuras para enquadrar apenas as áreas iluminadas. Ao trazer um objeto da ilha para a praia e contemplá-lo sem a ajuda do binóculo, percebemos que tanto as luzes quanto as sombras ficaram, na sua maior parte, pela travessia.

Continuarei indo a todos os encontros. Mas sem confundir praias, ilhas, e travessias.

Friday, November 21, 2008

Para Lili.

Aquela festa prometia. A idéia de fazer dela um encontro do Couchsurfing possibilitava a presença de várias gatinhas, locais ou internacionais. E eu vinha numa boa fase, algumas paquerinhas promissoras para desenvolver minhas habilidades pegadoras, com alguns progressos aqui e ali, embora persistisse a dificuldade na hora do bote, na hora da finalização, quando a dita cuja já deu sinais suficientes que está afim, e o momento pede uma prática de língua não-verbal. Eu sempre ficava pensando em milhares de sub-etapas para completar essa tarefa do modo mais envolvente possível, e o resultado final normalmente acabava sendo o total fracasso da operação.

A festa começa, e a promessa não foi à toa. Bendito Couchsurfing! Era simplesmente a festa mais cheia de gatinhas da história daquele apartamento - do outro também, mas esse detalhe a gente omite. A verdade é que nas minhas festas sempre havia um predomínio da macharada - as poucas meninas que apareciam eram amigas de longa data, sem a menor chance de interação libidinosa. Mas naquela festa, quantas possibilidades! E mesmo que nada rolasse em direção às travessuras e gostosuras, a mera presença de gatinhas já muda o ambiente, já muda o papo, deixa tudo mais agradável de participar.

Alguém bota um Gonzagão, e o rala-bucho toma conta do salão, ou melhor, da salinha. Eis que uma das lindezas me chama pra dançar. Ah, se ela soubesse o quanto sou frustrado pela minha inoperância na área... Eu aceito, mas apesar da boa vontade dela, a dança não dura muito, pela minha total falta de jeito. Foi suficiente, porém, para focar o zoom do scanner naqueles olhinhos que brilhavam tanto, naquele sorriso de satisfeita consigo mesma, numa composição ao mesmo tempo meiga e peralta, que me deixou cheio de idéias interessantes.

Alguns tragos depois, a lindeza escaneada anuncia sua partida da festa, devido a forte sonolência provocada por certos temperos. Como assim?! No auge da festa? Protesto como os índios que tiveram sua terra invadida por uma empresa de celulose. Deu certo, ela decide ficar, mas precisa de um lugar pra descansar um pouco. Como bom anfitrião, a conduzo para um local onde ela pode cochilar sem perturbações, que por uma incrível coincidência vem a ser o meu quarto. Eu juro que, ao fazer a proposta, não estava pensando nas possibilidades que daí surgiam, minha intenção era mantê-la na festa. Mas o inconsciente tem razões que o consciente desconhece. Ao vê-la deitada, toda linda e sonolenta, sem mais ninguém no quarto, fui acometido por uma irresistível vontade de ouvir CDs que nunca achava, por mais que procurasse. Entrei várias vezes no quarto para completar essa missão, e ficava admirando-a com os outros 99% da atenção que sobravam da energia gasta com a procura das músicas perfeitas.

-Tás fazendo o quê? - Ela pergunta, despertando do seu soninho majestoso...
-Procurando uns CDs... odeio quando arrumam meu quarto, não consigo achar mais nada... tá tudo bem contigo?
-Ta tudo ótimo! - E eu tive a intuição de que as coisas podiam ficar ainda melhores. Sentei ao lado dela oferecendo um cafuné para ajudá-la na transição para o mundo dos despertos, e ficamos conversando sobre sabe Deus o quê, pois nesse momento minha mente trabalhava febrilmente nas milhares de sub-etapas... não lembro em qual delas eu estava quando ela me puxou pelo braço e a gente se beijou. Lembro que aquele beijo valia um milhão de sub-etapas se necessário fosse, e agradeci aos céus por ela ser muito mais competente na hora do bote do que eu.

De lá pra cá, os beijos se multiplicaram ao longo de quatro meses, compondo uma relação como eu nunca tive antes. Cada verso novo que eu ia lendo dela ia aumentando minha vontade de compor grandes obras em parceria. Ela é minha menina, eu sou o menino dela, e nossa sintonia é tão boa que eu me sinto como se esse entusiasmo de começo de namoro pudesse resistir ao tempo, a distâncias, ou qualquer outra dificuldade colocada por deuses brincalhões, a jogar xadrez com nossos destinos.

Hoje ela faz 27 anos, idade de morte de vários ídolos do rock, e data de meu nascimento. E é exatamente assim como eu me sinto em relação a nós dois: como se uma parte de mim, sempre de janelas fechadas, estivesse morrendo, para o nascimento de uma outra parte, que se nutre do sol que ela irradia. E o bem que isso tem me feito vai além de qualquer prosa, embora eu tente, bobo que sou, colocar esses mistérios em palavras, como um garoto tentando colocar oceanos em copos d'água. Feliz aniversário, Lili! ;)

Tuesday, November 04, 2008

Assombrações

Portanto, com a mesma certeza pela qual a pedra cai para a terra, o lobo faminto enterra suas presas na carne de sua vítima, alheio ao fato de que ele próprio é tanto o destruidor como o destruído." (Schopenhauer)

Aquele que luta com monstros deve acautelar-se, para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para o abismo, o abismo olha para você." (Friedrich Wilhelm Nietzsche, "Além do Bem e do Mal.")


Certas frases causam arrepios à primeira leitura. Tinha por volta de 10 anos quando as li pela primeira vez, num livro de RPG chamado Vampiro: A Máscara, e são arrepios como esses que me fazem defender o jogo dos que tendem a reduzi-lo a vertentes mais mongolóides da nerdice. Fanáticos há em todo lugar, e não é difícil entender o fenômeno quando se entra em contato com a condensação de psicologia, mitologia e interpretação que o jogo proporciona, permeado de pérolas como as acima por todo o livro.

Jung (cujo nome li pela primeira vez adivinha onde?) defendia a idéia de que todos temos conosco uma sombra, que seria a parte de nós que nos causa desconforto. Ela é composta por conteúdos inconscientes, que nos levam a agir de modo diverso do que nosso ego entende como sendo razoável.

Em casos extremos, a sombra pode desencadear comportamentos violentos, contra pessoas queridas, por razões tolas. Daí a ênfase no pensamento de Jung em construir vias de acesso ao inconsciente, através de interpetações de sonhos ou outras formas de inferência, já que as gavetas que guardam taís conteúdos estão fora do alcance do nosso eu consciente.

Tais processos não eliminam a sombra. Mas compreendê-la, tornando-se ciente da suas causas e da dimensão dos estragos que pode causar, ajudar a lidar com ela de maneira mais saúdável. Ajudar a não sacrificar valores, sentimentos e relações por não conseguir resistir ao impulso da sombra de jogar tudo para o alto por um momento de ódio.

Tuesday, October 21, 2008

Belicosidade

Não acordei bem na última quarta-feira. Não sei se fui vítima de alguma trapaça onírica cujo registro me foi roubado ao acordar. O fato é que saí da cama com sede de destruição. Claro que minha cidadania e minha compreensão das leis do karma me impedem de causar danos realmente sérios aos que me circundam. Sacio minha “sede de sangue” deixando que minha chatice, arduamente mantida sob controle em dias normais, se eleve a níveis insuportáveis. Força desproporcional em discussões vãs, coitada da minha mãe, na carona pro trabalho. Passando a vista no jornal antes de sair de casa, me deparo com a notícia da morte do menino de 16 anos do Ibura que, segundo testemunhas locais, foi obrigado a beber loló por policiais militares. Era o que eu precisava, um alvo justo para canalizar a minha ira. Qualquer agressividade é justificável quando se combate por uma causa nobre, já diria nosso Dalai-lâmico George Bush.

Chegando ao trabalho, sou escalado para cobrir o seminário Constituição Cidadã e o Estado Transgressor, cujo mote é os 20 anos de Constituição Federal e o foco são as falhas do Estado em garantir os Direitos fundamentais previstos em lei. Cada semana tem como tema um Direito diferente, e adivinha qual era o daquela quarta-feira? Direito à Segurança Pública. A platéia recheada de policiais militares ia aumentando meu desejo de, na hora das perguntas, citar o caso do jornal e perguntar sobre medidas cabíveis para coibir esse tipo de prática por parte dos fardados. Não há nada melhor para a vaidade do que combater por uma causa nobre, que o digam meus colegas universitários engajados em certos movimentos sociais, cujo resultado concreto é muito menos uma melhora das injustiças combatidas do que um aumento no ibope com as coleguinhas.

Durante o seminário, meu dilema ia se avolumando: saciar minha sede de sangue implicaria em me expor a uma classe cuja provável indisposição eu não tenho o menor interesse em despertar. Ao mesmo tempo, a escrotidão do caso, as leituras recentes sobre os deveres do jornalista de não se calar diante das injustiças, iam agitando o Caco Barcellos dentro de mim.

Eis que, no auge de toda essa tensão, sou socorrido por uma cavalaria, que atende pelo nome de Juíz Laete Jatobá. Indiferente aos meus receios, protegido pelo seu cargo, o Juíz não deixou pedra sobre pedra ao falar das injustiças da própria Constituição, que privilegia o patrimônio privado em detrimento do público, e das distorções do Código Penal Militar, resíduo dos tempos de ditadura, que faz com que apenas 0,97% dos casos de denúncia contra policiais resultem em algum tipo de punição. Era o juiz falando, os policiais se coçando, e eu quase gozando, vendo minha “sede de sangue” ser satisfeita, com muito mais propriedade, com muito mais impacto, e sem nenhum possível efeito colateral contra mim. Ás vezes, não há nada melhor do que gozar com o pau alheio, que o digam os fanáticos por futebol ao verem seu time jogando uma partida impecável.

Monday, October 06, 2008

Chamada a cobrar

Não ouça o que ele diz.
Dez minutos são suficientes para te convencer
da verdade das loucuras dele.
Cada ilusão sustentada por um encadeamento lógico de evidências e conclusões.
Sua paranóia é contagiante, de tão verossímil.
É por isso que ele hoje vive num sanatório
e você não deveria atender essa ligação.

Tuesday, September 23, 2008

Haikais

Haikais são esses poeminhas de 3 versos, que eu nunca tinha me aventurado a fazer até ser inspirado por alguns presentes na revista Ragu. Por favor não culpem a revista por quaisquer deméritos dessa minha aventurança - assumo total responsabilidade por qualquer naufrágio.

Meditação Transcendental
Após quebrar a cuca com o porvir
descobriu o próximo passo
uma rede para dormir

A dura aula de Educação Física
A bola rola até os pés da criança
enquanto sua mente se embola
com as palavras que não alcança

Presente de grego
Entregou o presente com cuidado
não sabia que se tratava
de um peido engarrafado

Saturday, September 13, 2008

Pedidos e defesas

Pedir dinheiro é uma prática com a qual eu tenho uma certa intimidade. No começo da adolescência, costumava ir aos sinais, alegando assalto e ausência de meios para voltar para casa, ou falta de recursos para realizar trabalhos de Feira de Conhecimentos, para converter a generosidade dos motoristas em subsídios para nossas farras etílicas. Eu não me orgulho, hoje, da falta de ética de então, embora a lembrança do fato me traga um sorriso nos lábios. Alguns tipos de diversão envolvem uma certa dose de sacanagem.

Agora, a situação se inverteu. Todos os dias meus trocados são suplicados pelos que carecem do que precisam, seja um prato de comida ou um copo de cachaça. Isso ocorre com tanta frequência que eu reajo como um robô, com uma resposta automática: tô sem moeda. É impossível atender a todos, e eu já aprendi a lidar com a culpa de não estar fazendo nada para ajudar a melhorar esse triste quadro.

Semana passada, no entanto, um pedido atravessou minhas defesas. Perguntando na banca de revistas qual a parada de tal ônibus, sou abordado por um cara de olhar angustiado:
-Parceiro, com licença, será que você não tem...
-Tô sem moeda - respondi, cortando o cara com meu automatismo.
-Né moeda não parceiro, é fome! Eu tô com fome, meu véio... acho que você não sabe o que é isso não, né?
Fiquei sem reação por alguns instantes, mas meu automatismo prevaleceu, ali na hora. Insisti na ausência de moedas, o cara me lançou um último olhar de frustração intensa, virou as costas e foi embora.

Caminhei atordoado para a parada de ônibus, e logo a confusão deu lugar ao arrependimento, de ter deixado minha couraça robótica tomar conta daquela situação. Chequei a carteira e vi que de fato só tinha umas poucas moedas, que mal dariam para uma pipoca, mas havia um banco perto, e eu tive vontade de correr atrás do cara para pagar-lhe um prato feito, conversar sobre as dificuldades dele, colaborar de alguma forma para ajudar um dos inúmeros personagens do triste quadro, um personagem cujos olhares e fala conseguiram furar o escudo resultante de anos de exposição diária à miséria alheia.

Mas eu demorei demais para transformar minha vontade em ação, o cara já deveria estar longe, e eu já estava em cima da hora para um compromisso... em pouco tempo meu ônibus chegou, e eu percebi que esse furo nas minhas defesas renderia apenas um texto, uma outra forma de defesa, que suaviza minha angústia, mas não a do cara que a gerou.

Tuesday, August 19, 2008

(Des)informação

Comentando no blog do meu chapa Pelé Costa, percebi que tava praticamente escrevendo um post. Considerando que esse humilde espaço já carece de um post há alguns dias, coloco aqui o link do espaço do chegado, onde você pode ler o texto que gerou esse comentário que posto aqui:

Hoje em dia, com a overdose de informações dos diversos meios, fica complicado achar as que produzam a "aprendizagem significativa". Ou melhor, considerando que qualquer informação tem esse potencial, nossa sensibilidade é embotada pelo excesso, gerando aquele incômodo "é tudo em vão", que você experimentou.

Um trecho de Sherlock Holmes me marcou ainda pirralho: diante do espanto do Dr Watson por ele, Holmes, não saber nada sobre o sistema solar, o detetive afirma que a mente é como um sótão: o insensato a acumula de informações desordenadamente, e quando vai procurar o que precisa, ou leva muito tempo ou não acha. Já o metódico a organiza com cuidado, só colocando dentro dela o que é importante para sua existência, sua função. "Você diz que giramos em torno do sol. Se girássemos em torno da lua, não faria a menor diferença pro meu trabalho".

Hoje a neurociência diz que a mente é elástica, quanto mais imput, mais coisa cabe. Mas permanece comigo o sentimento sherlockiano, que a maior parte do que carregamos é um peso desnecessário.

Tuesday, August 05, 2008

O Inferno dos Outros

Voltando do trabalho com o bom humor de quem está a poucos minutos de um delicioso almoço, vejo um cãozinho hesitante no meio da rua, na frente do carro à minha esquerda, que parou para evitar o "laticínio". O bicho ameaça entrar na minha faixa, paro o carro também, assim como o carro à minha direita. O cãozinho então desaparece da minha vista, e após alguns instantes eu e o da direita damos partida, no que ouvimos os ganidos de dor do bichinho atingido. Não sei qual de nós o acertou, nem se ele sobreviveu. Sei que o desespero do animal, correndo em círculos e gemendo alto, ficou impresso em minha mente, destruindo o bem-estar que me acompanhava na ocasião.

Viajando com um amigo, a conversa desagua no caso do primo dele, que anda deslumbrado com drogas e bandidos, matando os pais de desgosto com a impenetrável questão: onde erramos? O primo teve acesso ao melhor que a classe média pode oferecer. Na ânsia por respostas, especula-se sobre a revolta dele ao se descobrir adotado, sobre o excesso de liberdade concedido pelos pais, sobre a falta de uma atitude mais enérgica para recolocá-lo nos trilhos quando começou a descarrilhar... É imposssível medir o peso de cada fator no descaminho do primo, e "o que aconteceria se..." é uma pergunta tão inevitável quanto inútil.

Ao falar sobre o sofrimento do tio, que deixa ele próprio penalizado, meu amigo apontou que o primo não está nem aí para isso. E aqui chegamos ao que me parece o X da questão: a capacidade de se sensibilizar com a dor alheia. A imagem do cachorrinho, que tanto me abalou, provavelmente seria recebida com indiferença pelo primo.

Pesquisas recentes indicam que essa capacidade é determinada geneticamente: ao examinar o cérebro de vários psicopatas, os cientistas notaram um traço em comum: a ausência de uma substância necessária para o bom funcionamento da área cerebral responsável pela sensibilidade ao sofrimento dos outros.

É impossível medir separadamente o peso da genética e do ambiente na construção da personalidade. Nos sentimos melhor acreditando na predominância do meio, pela possibilidade de mudanças, melhoras... É doloroso aceitar que nosso precioso livre-arbítrio, ou as escolhas dos nossos pais, respondem muito menos pelo que somos do que nossos cromossomos. Principalmente quando é nosso filho quem ignora nossos ganidos e nossas corridas em círculos para tentar ajudá-lo.

Tuesday, July 29, 2008

O Surgimento de uma Lenda

É uma linha tênue a que separa a tragédia da comédia. A notícia do último sábado tinha toda a cara de fatalidade comovente: um bebê de 9 meses é atacado por uma cobra coral, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Acontece que o nosso pequeno notável destruiu a tal linha a dentadas, literalmente: após ser picado, o cidadãozinho reagiu e matou a cobra com mordidas na cabeça! A mãe entra no quarto e se depara com o suja-fraldas rindo, com a cobra enrolada no braço. Ele teve uma intoxicação, mas foi levado ao hospital e já passa bem.

É o tipo da história que, se fosse ficção, deixaria o autor em maus lençóis, de tão inverossímel. Será o engatinhante uma reencarnação de Hércules, o semi-deus grego que também se livrou de uma cobra ainda bebê? Que outras façanhas o destino reserva para o nosso herói? Esse pirraia tem que ser acompanhado, ou melhor, ele devia ser treinado por Pai Mei, de Kill Bill, para proteger o mundo da opressão dos opressores. Se ainda existissem oráculos, saberíamos que somos testemunhas do surgimento de uma lenda. Já dá pra ver o danadinho sendo disputado à bala pelos melhores exércitos, sem permanecer fiel a nenhum, como um Aquiles do Século XXI...

O que não pode é desperdiçar esse potencial imenso numa sala de aula... nosso guerreiro diminuto tem que ser mandado o quanto antes para a Amazônia, onde seu talento será de grande serventia para os habitantes da região... com 4 anos, ele já estaria apto a ajudar o Governo no combate aos desmatadores... aos 6 já poderia libertar os reféns das Farcs... Com um treinamento adequado, dá até pra acreditar no Brasil resistindo a uma invasão dos EUA, o Capetinha valendo por exércitos, como um Rambo Tupiniquim...

Avante, Capetinha! A força já está com você! Que os Deuses guiem seu caminho, e não deixem o inimigo te comprar!

Monday, July 21, 2008

Filmes sem orçamento

Deitado na rede, Thiago vê a fumaça do incenso subir lentamente, diminuindo o ritmo de seus pensamentos. Por vários dias uma inquietação vem crescendo em sua mente, ocupando um espaço maior do que ele gostaria que ocupasse. Praticante involuntário de longos devaneios, Thiago observa os filmes que irrompem na sua tela psíquica, trazendo cores e sabores variados... Há um certo amargor de desejo não satisfeito, que o jovem trata de minimizar editando versões alternativas dos acontecimentos reais. Na trilha sonora, Cartola sussurra: “acontece que meu coração ficou frio...”, mas as imagens mostram que o do rapaz está muito mais próximo do Equador do que dos Polos. Só segue em silêncio porque as oportunidades perdidas deixaram a sensação de que, agora, qualquer barulho é inútil.

A inquietação tem cabelos longos, olhos brilhantes, e nome musical. Thiago está apaixonado, como ela sugeriu ao vê-lo perdido em seus pensamentos, e a ele faltara, mais uma vez, a ousadia para confirmar, confessar de uma vez o que vinha tentando dizer com tímidas massagens e carinhos na nuca, os quais ela ora recebia, ora repelia, como um sinal verde que amarela quando se menos espera... Nos clipes em exibição no seu cinema interno, há o excesso de romance que tanto atrapalha... Imagens que, de tão doces, impediam uma ação mais incisiva, uma finalização, como bem nomeou um colega. Thiago esquecia que ela também é feita de carne, uma carne que dilata a pupila da macharada por onde passa, e que ele não tem a menor idéia de quando poderá tocar novamente.

A menina partiu para ver outras paisagens, como naquela música do Caetano gravada pela Calcanhoto. Há muito mundo no mundo para uma pessoa passar a vida no mesmo canto. Aqui a vida dela era composta de cenas que se repetiam sem movimentar a trama para frente. Lá não se sabe o que a aguarda, e não se pode competir como um universo inteiro de novas possibilidades. Os filmes de Thiago também mostram várias possibilidades, mas há, agora, uma grande distância separando-as da realidade. Às vezes ele suspeita que teme concretizar suas fantasias por achar que o espaço do real é insuficiente para elas... Em seu cinema, por outro lado, os filmes não têm limites de orçamento.

Ele não sabe por quanto tempo os filmes ficarão em cartaz. O incenso converteu-se em cinzas, mas seu perfume continua sugerindo enredos, improváveis e deliciosos... Com as pálpebras já pesadas pelo prolongamento das sessões, Thiago prepara-se para deixar Morfeu assumir a direção dos devaneios. Pouco antes das luzes se apagarem, o jovem escuta o que precisa ouvir para uma noite de sono tranqüilo.


***

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Thursday, July 10, 2008

Como parar de beber sem arruinar sua vida social

Parar de beber exige muita personalidade, principalmente se você é jovem e não está disposto a largar a boemia junto com o álcool. Para a maioria, não existe diversão sem manguaça, o que te leva a ser visto como um penitente, alguém que trabalha contra o próprio bem-estar, como os religiosos extremistas que se chicoteiam para se elevar espiritualmente, abrindo mão dos prazeres da carne. Muitas vezes, ao abandonar a birita, o cidadão encontra dificuldades em manter seu círculo de relações, ou manter relações no círculo. Alguns cuidados, portanto, são necessários para que o abandono da marvada não te deixe numa “lei seca” capaz de tirar sua concentração não apenas no trânsito, mas em todo o resto.

Nessa luta pela manutenção do seu equilíbrio psicológico, substituição é a regra de ouro. Na natureza nada se perde, tudo se transforma, e isso é ainda mais verdadeiro no caso de vícios e muletas sociais. Se você for numa reunião dos Alcoólicos Anônimos, vai perceber que café e cigarros ali são consumidos em quantidades industriais. Cigarro durante muito tempo foi um grande conector de pessoas, mas os cuidados com a saúde e sua proibição em ambientes fechados vêm fazendo com que ele despenque no ranking de alternativas sociais ao levantamento de copos. Café continua eficiente, mas sua penetração é limitada, dominada pela turma dos óculos quadrados, uma área de difícil inserção se Truffaut não mora no seu coração, como dizem The Playboys.

Duas alternativas vêm galgando posições com uma rapidez impressionante: maconha e açaí na tigela. A primeira vem deixando de ser coisa de maloqueiro, artista ou Ministro da Cultura para se espalhar pelas bocas das mais variadas tribos e camadas sociais. É uma muleta cujos donos têm prazer em compartilhar, especialmente com belos exemplares do sexo oposto. Tem o inconveniente de ser ilegal, o que pode te causar problemas para obtê-la, se você ainda não entrou na universidade.

Açaí na tigela cobre a área que a maconha não alcança: a geração saúde que freqüenta academias e se preocupa em ter uma mente sã num corpo são, à base de halteres e livros como O Segredo. As porções são generosas, próprias para se comer a dois. O lado negativo é que, para que os dois se comam, é necessário terem gasto tempos semelhantes no cultivo do corpo. Afinal, todos que investem numa atividade tão entediante esperam uma recompensa à altura, que se traduz num parceiro capaz de provocar torcicolos ao caminhar pela praia.

Jogos também são uma grande pedida. As pessoas precisam de pretextos para se encontrar para jogar conversa fora: se convida para uma cerva, para um açaí na tigela, para bater umas pedrinhas (dominó, viu noiado?), mas ninguém propõe um banco de praça debaixo de uma árvore num dia de sol para trocar idéias emolduradas pelo canto dos passarinhos. Jogos são um excelente pretexto, a menos que você seja uma criatura altamente competitiva como eu: nesse caso, destroçar os patos ao lado é muito mais importante que conversar, o que pode atrapalhar a fluência do diálogo. Outro problema é o semear da discórdia ocasionalmente causado pela jogatina: muitos namoros ou amizades foram seriamente abalados por partidas de War. Convém tomar cuidado com as gréias dirigidas a quem está perdendo: há registros de assassinatos cometidos por conta de uma ficha de Playtime.

Como se vê, quem abandona os descaminhos etílicos pode se encontrar em várias outras direções. Todas as alternativas aqui apresentadas são compatíveis com a Lei Seca, que vem dando azia aos pinguços de plantão. Libertar-se da tirania etílica é resgatar a paz e energia da infância, quando você se identificava com as historinhas do Do Contra. Ao descobrir sua essência interior, e descambar para os vícios revelados por esse insight, sua identidade se firma tanto que você passa a acreditar que é alguém único e especial. E é de ilusões como essa que as pessoas precisam para viver bem.

Thursday, June 12, 2008

O Sport e o Nordeste


O Sport Clube do Recife conquistou a Copa do Brasil de 2008, e eu estava lá na Ilha do Retiro, cantando os gritos de guerra que tanto irritam os que não torcem pelo Leão, categoria na qual eu próprio me incluía até o jogo contra o Internacional nas oitavas-de-final, quando o gol de Durval me fez vibrar como há muito não acontecia assistindo bola a rolar. Esse entusiasmo, surpreendente considerando meu desinteresse pelo futebol pernambucano, se explica pelo “complexo de inferioridade” que sinto, como nordestino, em relação aos colegas sulistas.

Existe um estereótipo, difundido mesmo entre sulistas supostamente esclarecidos, do nordestino como alguém bronco, preguiçoso, incompetente. Isso pode ser percebido na caracterização de personagens nordestinos em novelas ou comerciais, em piadas “que teriam bem mais graça se não fossem o retrato da nossa ignorância, transmitindo a discriminação desde a infância”. O Nordeste aparece como um lugar agradável para passar as férias, sem relevância em assuntos sérios como excelência profissional ou decisões de campeonatos nacionais.

Claro que isso incomoda. Ouvir os comentaristas esportivos sulistas afirmarem que “o Palmeiras vai fazer um treino de luxo” na sua partida contra o Sport gera uma revolta que deixa a goleada rubro-negra mais gostosa que queijo coalho com mel de engenho. Pena não ter ouvido Cléber Machado quase chorar com a derrota do Corinthians, mas acompanhar a festa ao vivo teve um sabor muito mais especial.

A diretoria do Sport soube aproveitar bem o clima de “É o Nordeste contra o Sul/Sudeste”. No jogo contra o Vasco, na semi-final, a Rádioilha tocou O Rappa, a música do Créu, dentre outras coisas de fora da terra. No jogo de ontem, só deu música regional até a conquista do título, com direito a “Nordeste Independente” e a arrepiante “Madeira de Rosarinho”, cujo refrão não poderia ser mais apropriado: “Queiram ou não queiram os juízes, o nosso bloco é de fato campeão...” Antes do jogo também teve uma cena linda, com balões azuis e brancos amarrados numa faixa escrito PAZ, que subiram aos céus no momento em que Luiz Gonzaga cantava que a Asa Branca “bateu asas e voou...

O bom desempenho de um time pernambucano frente aos grandes times sulistas poderia conquistar o apoio de outros torcedores do estado, se não fosse por um detalhe que é também o trunfo da nação rubro-negra: a chatice de seus torcedores. No próprio grito de guerra do Sport há um “e o resto é merda!” que pouco contribui para atrair a simpatia dos vizinhos. Na saída do jogo ontem, puxaram um “toma no cu, Náutico!” que eu não entendi: o time é campeão da Copa do Brasil e a turma comemora xingando o rival local que sequer enfrentou o Sport na competição? Tricolores e alvirrubros têm certeza que os rubro-negros torceriam contra eles caso o Náutico ou o Santa Cruz estivesse disputando a final, e se negam a apoiar “A Coisa”. Vai ver que a instiga da estória é justamente amar odiar uns aos outros...

A chatice, no entanto, é conseqüência da paixão violenta que o rubro-negro tem pelo seu clube, e esse é um fator que desequilibra quando o time joga em casa. A Ilha do Retiro já vem sendo chamada de “La Bombonera” do Nordeste, pela fortíssima pressão dos torcedores do Sport. A energia do estádio é um negócio fantástico, capaz de abalar jogadores experientes, como o goleiro Marcos, do Palmeiras e ex-seleção. Trinta e quatro mil pessoas gritando e vaiando ao mesmo tempo exige muito preparo mental dos adversários. Até agora, não faltaram motivos para que se cante, a plenos pulmões: “Eu, eu, eu, caiu na Ilha se fudeu!” :D

Wednesday, May 14, 2008

Idéia sem registro

Tinha uma idéia dentro daquela xícara de café
Uma idéia que piscava, dourada no fundo negro
Piscava tanto que não se revelava
Era preciso firmá-la, mas de que jeito?

Bebi o café e a idéia sumiu
Para reaparecer depois, por alguns instantes,
e sumir novamente.
Continuava a piscar
só que
mais lento
quase definindo
os contornos.

Na segunda xícara,
o piscar
alongou-se.
A idéia se espreguiçava na rede dos meus neurônios
irradiando dourado pelas sinapses desbotadas
e no momento em que eu ia tirar a foto
a idéia caiu
da rede.
Os rastros de dourado
se dissolveram
lentamente
na escuridão

Fiquei de câmera na mão, esperando o retorno da idéia
mas ela não voltou. Nem com mais xícaras.
Quando larguei a câmera, cansado de esperar
Senti um peteleco na orelha
E vi dela escorrerem
gotas de dourado.

Peguei o violão e dos meus dedos saíram melodias luminosas
mas quando quis gravá-las
elas voltaram
ao cinza habitual.

Desisti de registrar a idéia.
Apenas sigo seus rastros
quando ela inventa
de (des)aparecer
numa xícara de café.

Tuesday, May 06, 2008

Recife, Marcha da Maconha e a vela que não se apaga

Recife é uma cidade cheia de curiosidades canábicas. Capital do estado do polígono da maconha, a cidade disputa com Porto Alegre o primeiro lugar em apreciadores do tapinha que não dói, mas deixa a boca seca de tanta polêmica. Honrando sua herança colonial holandesa¹, a capital pernambucana sediou no último domingo (04/05) a marcha da maconha de maior apelo das massas (mais de 1000 pessoas, de acordo com o Globo Online) e maior tranqüilidade do país.

Recife, a rocha marítima, em inglês é reef, palavra também usada para os enroladinhos de camarão de Cabrobó, vendidos como joints para os turistas anglófilos nos coffee shops de Amsterdã, e conhecidos como coisinha, mulher de adão, coloseimas, a massa, presença (dentre outros) no estado de Lampião, que também quebra um galho na ausência de isqueiro. A quantidade de usuários na cidade causaria um infarto no Capitão Nascimento – faltariam viaturas e celas para enjaular todos os “financiadores dessa merda”.

Leva tudinho, Caveira!

De acordo com o anti-herói mais carismático do cinema nacional, ídolo da classe média apavorada², quem usa drogas acende os pavios de bomba da violência, ao dar dinheiro para bandidos. É um fato, mas qual a melhor maneira de lidar com ele? Matar ou prender traficantes e jogar os usuários na cadeia? Não existe time com mais peças de reposição do que o tráfico, e os usuários já mostraram que nem a possibilidade de ter a vida estragada por “férias numa colônia penal” retira deles o hábito.

A guerra contra as drogas é como soprar aquelas velinhas de aniversário que nunca se apagam. E a cada nova flama é derramado o sangue de culpados, suspeitos e inocentes. Enquanto isso, rios de dinheiro caem nas contas dos mega-traficantes de que fala Bnegão, pessoas que não têm seus lares invadidos por policiais do Bope.

A oposição à proibição das drogas não é exclusividade dos usuários. Políticos como Jeferson Péres e advogados como Evandro Lins e Silva concordam que a política atual é um desastre. Sua meta, a erradicação do consumo, é impossível de ser alcançada – sempre houve e sempre haverá pessoas propensas a usar drogas, que não abrem mão desse direito por uma lei que consideram ilegítima.

A legalização aparece como uma alternativa, mas encontra muita resistência. Alguns dizem que “viraria zona”, como se o atual nível de violência fosse um modelo de ordem desejável. Outros apontam para a possibilidade dos criminosos tirarem o prejuízo da não-venda das drogas em outras atividades, como seqüestros e assaltos. Fica parecendo que a proibição é uma maneira de manter a violência em “níveis toleráveis”, já que a maior parte das vítimas não ganha capas de revista, nem passeatas pela paz.

Se depender dessa galera...

A marcha da maconha veio com o intuito de promover o debate sobre a questão. Há muita irreflexão sobre o assunto, que vai do “maconheiro tem que morrer” ao “vamos babilonizar o mundo”. É preciso dissipar toda essa fumaça que cerca o tema. É preciso sentar o dedo nessa porra de preconceitos.

*******

1: Expressão emprestada do músico e filosófo Domingos Sávio, infatigável defensor do verde.

2: Expressão emprestada do cartunista Arnaldo Branco, criador do Capitão Presença, que aparece na animação da Marcha da Maconha.

Essa reportagem mostra o uso da canabis na medicina popular. Os velhinhos comovem a quem assiste.

Wednesday, April 30, 2008

As Reticências de Renato

Já tinha um tempo que Renato vinha tentando escrever textos afirmativos, daqueles preto-no-branco, sem espaço para vaguezas. O problema é que vaguezas eram só o que ele tinha. Isso já ficava claro pelos cumprimentos no trabalho:

-Bom dia, doutor Renato!
-Bom dia...

Aos 40 e tantos, os colegas de Renato eram todos afirmações exclamativas: salários altos, carros do ano, parceiras gostosas. Renato também ganhava bem, mas não trocava de carro há mais de 5 anos, para irritação de sua filha adolescente:

-Me deixa um quarteirão antes, que eu não vou chegar no bar nessa banheira velha.
-Tudo bem...

A vida de Renato seguia a cartilha com primor: um bom emprego, uma esposa carinhosa, uma filha estudiosa e chateosa como a idade manda. Mas nosso doutor, por mais que tentasse, não conseguia escrever um texto afirmativo, não conseguia se afirmar diante da vida. Sobravam reticências onde faltavam conclusões:

-Querida, o leite está frio...
-Amor, eu sei que você consegue! Repita comigo: O leite está frio!
-Eu acabei de dizer, ele tá frio...
-Não! Pare com essas malditas reticências! Diga que a porcaria do leite está frio! F-R-I-O! Se aprume, ômi!
-Perdi a vontade de beber leite... - disse nosso doutor, se voltando para seu texto incompleto.

Ele estava intrigado com a própria incapacidade conclusiva. Tentou escrever frases curtas soltas, só pelo ponto final: "The book is on the table" - e quando ele colocava o ponto final, a mão tremia rapidamente e lá estavam os dois infames pontinhos ao lado. "Eu não consigo..." - e nem ao escrever a constatação de um fato conseguia evitar as malditas reticências.

Desanimado, Renato foi pensar na vida caminhando pelo bairro. Talvez fosse uma questão de dar ordens. Ordens exigem uma exclamação, no mínimo um ponto final. Mas o doutor era um cara politizado, avesso à exploração do homem pelo homem. Quem ele iria comandar? Sua esposa não se sujeitaria, sua filha muito menos. Foi aí que Renato teve um lampejo exclamativo:

-Mas é claro, um cachorro!

Dirigiu-se empolgado ao centro de adoção de cães. Logo ao entrar teve o olhar fisgado por um cãozinho que não parava de andar em círculos, numa eterna caça ao próprio rabo. Indicou-o ao vendedor, que ordenou:

-Quieto, cãozinho! - o vendedor abrira a gaiola com a coleira na mão, mas o cãozinho não parava de andar em círculos. O vendedor gritou duas, três vezes, mas o pequinês nem mudava a marcha. Renato ficou impaciente:

- Vamos lá, meu chapinha... - no terceiro instante de pausa representado pelo último pontinho, o cãozinho parou. Parou e ficou olhando para Renato, com a língua de fora, abanando o rabo, satisfeito. O doutor pegou a coleira do vendedor, o pequinês saiu da gaiola na direção de seu novo dono.

Chegando em casa com seu novo amigo, Renato correu para o seu texto. Constatou que continuava incapaz de evitar as reticências. Mas entendeu que elas podiam fazer com que sua estória parasse de andar em círculos, como fizeram com seu cãozinho, a quem resolveu chamar de Reti...

Thursday, April 24, 2008

Malandros Otários

Procurando por programas de gravação de audio na web, me deparo com um de nível profissional, disponível gratuitamente para teste: depois de cerca de um mês você precisa registrá-lo para continuar funcionando, o que implica em pagar 25 dólares. Mas eu sou um internauta ixperto, com mais de 10 anos pegando onda nas praias virtuais, sem nunca reduzir minhas modestas economias. Fui atrás de um cracker para desbloquear o programa, uma malandragem virtual poupadora de verdinhas. Acontece que o cracker que baixei era na verdade um vírus, que lascou o meu pc e me fez gastar 60 reais para consertá-lo, mais do que o custo para registrar o programa oficialmente.

Eu fiquei com tanta raiva de ter feito tamanho papél de trouxa que adoeci, a desarmonia psíquica derrubou meu sistema imunológico. Aí fiquei pensando que conquistei meus maiores troféus de otário justamente na busca das vantagens malandrosas. Existem os inocentes que não percebem os golpes alheios, tornando-se alvo preferencial dos tubarões. E existem as sardinhas que se acham tubarões, e vivem a tomar caldo das jogadas em que se arriscam.

Eu já passei pelos três papéis. A condição de inocente é frustrante, ninguém gosta de ser passado para trás. Mas através dos fumos que levamos vamos ampliando nosso repertório, o que nos impede de cair nos mesmos trambiques (embora algumas pessoas fujam a essa regra), e permite aplicá-los no otário mais perto, seguindo a moral do mundo livre, de acordo com Fred 04: "ou você explora o próximo, ou o próximo é você". Ser tubarão é divertido, até os outros descobrirem. Os que sabem da sua condição de vigarista tendem a se afastar, e a alertar os incautos sobre suas patifarias. Cedo ou tarde todos saberão de que se trata de um pilantra, e aí as coisas vão ficar feias pro seu lado.

O outro problema é que todo tubarão é uma sardinha em potencial. Basta um erro de avaliação, uma falha em perceber o preju disfarçado de lucro, e tchibum! - lá vai o ixperto levar caldo da própria ixperteza. É mais negócio, portanto, usar a malandragem para se defender, e não para atacar. Como já disse Jorge Ben: "Se o malandro soubesse como é bom ser honesto, seria honesto só por malandragem".

Sunday, April 13, 2008

Bloqueio Criativo

Basta escrever meio verso
para a mente dizer que está péssimo
que pioro idéias que já tive.

Procuro pelos mestres seletos
suas lições me soam como tcheco
nenhum sentido me atinge.

Dormência no ouvido interno
Frequência perdida no aéreo
Nervoso que nada imprime.

Wednesday, April 09, 2008

Quebra de Mecanizações

Tem horas que fico enjoado do meu jeito de falar. A música da fala, as entonações, as subidas e descidas, tudo isso fica tão mecânico, tão automático, que cansa. E aí o falar sai do prazer para o fardo, terminando o quanto antes, como toda obrigação inadiável. E eu lembro bem da satisfação de brincar com as teclas verbais, compondo frases que soam bem aos ouvidos. tornando muitas conversas corriqueiras um momento de deleite. A lembrança do que falta só incomoda quando já se teve.

Eu tive a sorte poder quebrar essa mecanização 2x por ano, quando viajava para passar as férias com minha família em Belo Horizonte. As brincadeiras com meu sotaque nordestino me levaram a mudá-lo nessas ocasiões, trocando o "ti" e "di" por "tchi" e "dchi", e o "esse" chiado pelo sibilado. Era bem divertido, me permitia degustar as palavras de outro jeito, e ao voltar para meu sotaque natural, a quebra da mecanização também lhe dava um sabor especial.

Com a adolescência e suas demandas de afirmação de identidade, mudar o sotaque me parecia falso, uma demonstração da insegurança que eu queria combater. Abandonei as quebras, embora notando que meu falar nordestino dirigido à minha família do sudeste não era exatamente o mesmo do praticado com meus conterrâneos. As quebras ficaram restritas às imitações caricatas dos outros sotaques, brincadeira que ainda hoje me diverte um bocado, não dispenso uma oportunidade de falar bobagem em carioquês.

Descobri uma nova quebra falando inglês. Me divirto conversando, lendo textos em voz alta, e noto que em inglês eu faço menos rodeios, e me sinto mais à vontade para expressar certas idéias. É como se em português eu ignorasse as idéias comuns, buscando as brilhantes, enquanto que em inglês as idéias comuns me soam boas de serem ditas.

Pertencer a um lugar, a um sotaque, à uma cultura, traz mais ônus do que bônus? Me parece que quem está muito preso na própria sente dificuldade em apreciar outras. E quebra mecanizações com muito menos frequência.

Tuesday, March 04, 2008

Notas decompostas no tempo

Quanto tempo gasto com as malditas músicas. Inúmeras horas roubadas pelas canções, roubadas dos estudos, dos esportes, dos namoros e outras atividades importantes para o desenvolvimento humano. Para quê? Para saber decorado dezenas de letras que minha pouca afinação me impede de (en)cantar? Para construir identidades etéreas, me sentindo maloqueiro com Racionais, sedutor com Chico Buarque ou religioso com Clara Nunes? Eu me esforço para descobrir as vantagens que isso trouxe. Saber cantar uns versos bonitos, mesmo que desafinados, dá algum ibope com algumas gatinhas. Mas saber dançar forró dá muito mais ibope com muito mais gatinhas. Bom, eu sempre me dei bem em interpretações de texto, e talvez meu queimatempo sonoro tenha ajudado um tanto nisso. Um possível pró, para diversos e concretos contras... Se eu tivesse dividido todo o tempo de escutador em 5 partes, e tivesse gasto 1/5 nos estudos, 1/5 nos esportes, 1/5 dançando forró, para gastar o quarto quinto nos namoros, ainda me sobraria um quinto para escutar o que quisesse, o que seria suficiente para ouvir todas as músicas já ouvidas nesse tempo todo, se não repetisse nenhuma. Muito mais inteligente do que ouvir dezenas de músicas dezenas de vezes... mas nesse caso, eu não saberia nenhuma letra decorada, e as identidades etéreas se dissipariam antes mesmo de se formar, não me sentiria nem maloqueiro, nem sedutor, nem religioso, nem outras dezenas de personagens. Eu olho com inveja para esse eu hipotético, mas tenho a impressão de que ele olharia do mesmo modo para mim.

Saturday, February 09, 2008

Rota Imprevisível

Ela não sabe, e não serei eu quem dirá
Dançamos no mesmo espaço, ela lá, eu cá
cada um com seu outro par.

Não se deve mostrar cartas antes do fim da aposta
É melhor deixar no ar algumas questões sem resposta
Um dia elas emergem na costa.

Por enquanto elas navegam no oceano do inexprimível
Em busca da correnteza que as leve ao lago do audível
Uma rota de duração imprevisível.

Monday, January 28, 2008

Paródias da vida.

Seres competitivos como eu têm dificuldades em assimilar uma derrota. Minha expressão pode estar tranqüila como a de um monge budista, mas é pura fachada. Por dentro eu estou repassando raivosamente as falhas, e seus respectivos acertos perdidos, que ficarão congelados na minha mente por um período diretamente proporcional à minha sede de vitória. E se eu estou jogando, é pra ganhar, embora a gana varie de acordo com diversos fatores, como escrotice do adversário, pessoas para impressionar na platéia, ou derrotas acumuladas anteriormente. Eu só não jogo para ganhar quando sou ruim na disputa em questão. Afinal, é sempre bom conjugar expectativas com realidade.

Esse apego pela vitória me leva a só entrar em disputas onde tenho chances razoáveis. Maus perdedores não experimentam muito, preferem ficar em terreno conhecido, onde sabem para onde vai. E cada vez que eu deixo de tentar algo novo para não exibir a minha inabilidade, uma parte de mim fica com raiva. Há um pequeno aventureiro dentro de todos nós, mesmo que só ande com três seguranças num carro blindado por ruas vigiadas por câmeras. Esse pixote a quem nego o novo vai buscar sua satisfação por outras vias tortas, como um fã de jiló obrigado a comer aspargo. Corre pros velhos jogos, esses companheiros de amargor, com seus golpes de sorte e habilidade a parodiar certos aspectos da vida. Às vezes uma paródia da vida é tudo que precisamos.

Tuesday, January 22, 2008

A sabedoria da inércia introspectiva

Não saber aonde ir
Com que linhas traçar o caminho
Sem destino.
Porque metas são como estrelas-do-mar:
cada pedaço cortado gera uma nova
E a mente é viciada no jogo:
"O que fazer agora?"
Muitas relizações para um ego "satisfeito"...
Um corpo bem alimentado...
Confortos assegurados...
A certeza de uma vida bem vivida
na hora da morte.
Quando nos esforçamos para lembrar os momentos plenos
E esquecemos de como são poucos em relação ao todo
Por tudo isso, em alguns momentos,
reservo-me o direito de sair do jogo.
Elucidando a viciada pela ausência de sua dose
E tentando ir para de onde nada se sabe.

Friday, January 04, 2008

A busca por credibilidade

Paulo Coelho e um pessimo escritor, de acordo com muitas pessoas que jamais leram um livro dele. Nao gostar de Paulo Coelho e exibir senso critico apurado, e se colocar fora da ingenua massa consumidora de livros de auto-ajuda e discos do Jorge Vercilo. Pouco importa se o objeto do desgosto nao foi sequer tocado. Exibicoes nao precisam ser verdadeiras.

Nossas preferencias dizem muito sobre quem somos, ou queremos ser. E ninguem quer ser ingenuo - os fas declarados de Paulo Coelho ou ignoram ou nao se importam com o baixo valor literario atribuido ao antigo parceiro de Raul Seixas. Nao se preocupam em fazer parte da "elite intelectual", ou talvez se sintam parte justamente por ler o bruxo.

Avaliar arte com propriedade e uma tarefa para poucos - um grupo bem menor do que os que desgostam de Paulo Coelho. Claro que nao e preciso saber avaliar com propriedade para desgostar de uma obra. O problema e que muitos desgostam de Paulo Coelho para demonstrar que sabem diferenciar literatura boa da ruim, embora nao sejam capazes de explicar a distincao. Demonstracoes tambem nao precisam ser verdadeiras.

Quando adolescente, nao admitia que gostava de Oasis porque isso diminuiria minha credibilidade entre meus amigos grunge-metaleiros. Hoje ja nao me importo em dizer que sou fa. Paulo Coelho? Li apenas um livro, Veronika Decide Morrer, na mesma epoca em que ocultava meu apreco pelos irmaos Gallagher. Gostei muito. Mas nunca li mais nada dele, talvez por medo de gostar e ter que lidar com o desmonoramento da minha credibilidade intelectual. Em alguns aspectos, ainda tenho 14 anos.