Thursday, December 28, 2006

Gentileza não é Frescura

Gentileza não é frescura. As melhores conversas são as horizontais (não essa que pensais, ó mente profana), aquelas em que os falantes estão no mesmo nível. As diferenças de status, poder, dinheiro ou talento devem ser deixadas de lado, ou levadas na brincadeira, para o bem da conversa. Senão, a conversa fica vertical, como um prego na areia, facilmente derrubável pelo mais insignificante dos ventos. Já o prego na horizontal, sob o mais forte vendaval, apenas mudaria de local, podendo flutuar, ao lembrar da sonhada mulher, para logo em seguida desabar, ao vê-la nos braços de um outro qualquer.

Diversos homens se sentem desconfortáveis com a gentileza, receosos de que ela lhes comprometa a masculinidade. Talvez por isso os gays sejam tão populares com as mulheres, não esquecendo, é claro, que a ausência de risco predatório eleva bastante o grau de intimidade e cumplicidade. Essa grosseria masculina prejudica as conversas, visto que é a gentileza que deita o prego, embora alguns só o façam quando vão à cama ou a nocaute, o que os torna desmerecedores de boas conversas. Quando dois deles se encontram, não há conversa e sim dois monólogos, um tentando superar o outro na milenar arte da preguice.

Claro que a grosseria tem seu lugar nas boas conversas, principalmente como recurso humorístico. Tirar onda com o próximo também é ótimo, desde que a gréia vise o sorriso de todos, e não apenas a cara amarrada do greiado, cabendo a ele recusar o papel de estilão. Mas não falo da grosseria engraçada, e sim da praticada por receio de implicações baitolísticas. Acabemos com essa bobagem de uma vez por todas: gentileza não é frescura.

Wednesday, December 27, 2006

Contagem Regressiva

Quanto tempo leva um desejo
Para realidade se tornar?
Horas e meninas levadas eu vejo
No devaneio em cuja tela
Não me canso de pintar

Anos podem passar carentes do fato
O quadro pendurado na parede do inviável
A espera nunca é vista com agrado
Contagem regressiva cujo fim é variável

Tentando adivinhar, em más horas emudeço
Fico cego para a via em que devo caminhar
Uma bola de querer esperando o arremesso

Eis que uma música qualquer me lança contra a parede
Onde o quadro pendurado está cansado de aguardar...

... e a parede cede ao fato do consumado desejo.

Wednesday, December 13, 2006

Racionalização

A notícia não poderia ser mais noticiável: “Garota reage e mata estuprador” (Capa do Diário de Pernambuco, de 12/12/06). Sexo, sangue e singularidade, os três esses do sucesso, também do Six Six Six, the number of the beast, pra adequar a viagem aos meus leitores metaleiros. Confesso que fiquei com uma simpatia enorme pela menina. Que coragem! Em casos de estupro, eu concordo com o filósofo Jeremias, (http://www.youtube.com/watch?v=87xcp4FeQSI) quando declara que “quem é safado tem que morrer”, e quando a execução é feita em legítima defesa pela vítima.

Até os próprios bandidos repudiam estupradores, de acordo com os Racionais Mc´s (http://www.box.net/public/uoo2p27mzm), grupo de rap que faz da violência o grande tema de suas letras. Para mim, burguês metido a mala, ouvir Racionais foi daquelas experiências inesquecíveis, um universo que eu precisava conhecer, irresistivelmente. Eu conseguia enxergar, naquelas letras retratando a bandidagem, a indicação de outros caminhos que não o crime. Ao dissecá-lo, coisa que fazem muito bem, Mano Brown e Cia mostram que ele não vale a pena, apesar das vantagens imediatas que oferece – o preço pago é alto demais, e a cobrança vem mais cedo ou mais tarde. Eu acreditava que, se os bandidos em potencial ouvissem Racionais, aquilo os faria parar pra pensar, e possivelmente optar por ficar longe do crime.

Não fiz nenhuma pesquisa de campo para comprovar minha teoria. Mas, no Acaiaca, onde volta e meia o galego que vende cd pirata coloca Racionais pra tocar, noto que os “elementos suspeitos” cantam com especial prazer o refrão “hoje eu sou ladrão/pratico 157/as cachorra me ama/os playboy se derrete”. (http://www.box.net/public/9lad39fuez) O protagonista da letra morre no final, e Brown recomenda estudo e distância do crime à molecada da favela, mas ainda não vi ninguém nem cantar, quanto mais se empolgar com essa parte. Isso me fez repensar minha teoria.

Ouvir Racionais, por um lado, dá uma certa “credibilidade das ruas” ao ouvinte burguês, ou pelo menos é isso que ele acha: imagina o bandido vindo assaltar o “burguês-mala” e ele tentando se defender com um “pera ae mano, eu ouço Racionais!”. Provavelmente ouviria um “Ah é? Então canta Capítulo 4 Versículo 3 (http://www.box.net/public/i7sska1pau) enquanto eu te deixo de cueca!” (alguém aí lembrou do grande Boça, de Hermes e Renato? :D). Certo, esse parágrafo não tem nada a ver com a teoria, mas é que eu achei a piada boa e não encontrei lugar melhor pra ela. A coisa volta a ficar séria no próximo.

O problema é que o lado construtivo das letras dos Racionais, e aqui eu faço uma extensão a todo hip-hop que retrata a bandidagem, pode se diluir na exaltação da vida do crime. As letras em primeira pessoa encarnam criminosos, eles acabam se estrepando no fim, muitas vezes arrependidos. Mas o cara que ta pensando em ser bandido vai escutar bem alto a saga criminosa e bem baixo a lição final, de acordo com minha insuficiente amostragem do Acaiaca.

Claro que, dentre as variáveis que levam ao crime, a (distorcida) recepção das mensagens dos Racionais não deve ter grande peso. Pobreza, apelos do consumo e ostentação são os lutadores de sumô, no caso. Mas não dá pra deixar de notar que os crimes vêm ficando mais violentos. Hoje mesmo aconteceu outro assalto com ferido, na Av. Boa Viagem. Isso sem falar na cachoeira de sangue que despenca nas periferias e não ganha da mídia a mesma cobertura dos “sangue-azul”. E não dá pra deixar de notar que Racionais e outros hip-hops violentos têm se tornado cada vez mais populares. Alguma conexão entre os fatos? Só uma boa pesquisa de campo pode responder. Fica como promessa para quando a preguiça me abandonar.

Friday, December 08, 2006

Falta Poesia em Minha Vida

Falta poesia em minha vida.
Aquele clarão da cortina que levanta
com algo explodindo dentro, me fazendo rir.
Isso não acontece há algum tempo.

Talvez um precoce desencanto com o mundo
tenha retirado da minha pupila a capacidade de filtrar a luz.
Ou talvez meu ego tenha me deixado cego.
Parece que só consigo falar dele.

Falta poesia em minha vida.
Os livros permanecem não lidos.
O trago não traz encantamento.
Os caminhos me levam sempre ao mesmo ponto.

Caminho em círculos, sem prestar atenção.
Me visto de blasé, mesmo sem gostar da roupa.
Procuro água numa fonte que já secou.
Escondo as mágoas em lugares que tento esquecer...

Mas não esqueço, não expresso, não resolvo
Permaneço imanifesto, fingindo não dar valor
Ator despreparado que não sai do mesmo papél
Dirigido pelo tolo que meu ego se tornou...

...por deixar a poesia faltar em minha vida.

Friday, December 01, 2006

Astronautas

Vi um filme muito bacana essa semana. Os Astronautas. É a história de um viciado em heroína que, aos 40 anos, decide largar o vício. Ele não tem um emprego, mora num cortiço, sozinho. E carrega o estigma de ser visto pelas outras pessoas como um louco - ele realmente se comporta como um, em algumas situações. Poeta, com algum talento para artes plásticas e amante da música underground, ele é o que os americanos chamam de fracassado. Alguém que não conseguiu vencer na vida. E isso nos leva a alguns pontos interessantes.

"Vencer na vida" é a medida pela qual as pessoas normalmente avaliam umas às outras. Significa um bom emprego, que viabilize seu sustento e garanta o acesso a supérfluos que já se tornaram essenciais. Significa ter alguém para amar, mesmo que esse "alguém" se alterne em vários ao longo do tempo. Significa ser visto com respeito e simpatia pelos outros, cabendo aí alguma inveja da sua posição. Significa ter superado os vários obstáculos que separam a maioria das pessoas desse objetivo (algumas pessoas já nascem com a "vida vencida", mas elas são estatisticamente desprezíveis). Aos 40 anos, espera-se que você tenha "chegado lá", ou pelo menos subido uns bons degraus na escada. Essa é a visão dominante.

Há quem discorde. Existem os que querem nada mais que "uma casa no campo, onde possam plantar seus amigos, discos e livros" (http://www.box.net/public/7v6r0kfiui). Ou os que sabem "o quanto é difícil encontrar, de 10 homens ricos, apenas 1 com uma mente satisfeita" (http://www.box.net/public/q56e34l8hy). Ou ainda os que dizem "que não é preciso achar solução para vida, ela não é uma equação, não tem de ser resolvida" (http://www.box.net/public/rtmt8kjtfj). Estas idéias alimentam os que não querem medir a si e aos outros pelo critério "vencer na vida". Não querem fazer parte desse sistema, e são vistos como astronautas pelos adeptos dele. "Se antene, se ligue, caia fora". E então chegamos à questão das drogas.

A realidade nos afeta a partir do modo pelo qual a percebemos. Se alteramos essa percepção, a sensação é a de alterar a realidade, embora isso não aconteça de fato. A realidade permanece a mesma, embora ofereça incontáveis maneiras de ser percebida. Podemos ir embora para Pasárgada no fim do dia, para aliviar as pressões do cotidiano, ou simplesmente porque lá é melhor que aqui. No entanto, a passagem de ida para Pasárgada, oferecida pelas drogas, não custa o mesmo que a passagem de volta, se você resolveu morar de vez na cidade. Para ir, basta algum dinheiro. Para voltar, é preciso uma tremenda força de vontade, que a própria estadia em Pasárgada já fez questão de enfraquecer.

"O refúgio em Pasárgada é um consolo para os fracassados que não conseguiram vencer na vida", diriam os poderosos, do alto da escada. "Prefiro viver em Pasárgada do que fazer parte da podridão que alimenta esse sistema", diria um hóspede de longa data da cidade. "Eu prefiro um galope soberano à loucura do mundo me entregar" (http://www.box.net/public/cpf9nukyuv), já disse Zé Ramalho, que volta e meia vai para Pasárgada, mas sempre volta a esse "mundo louco", para contar o que viu por lá. Ele prova que astronautas podem viver bem na terra. É só não se perder no espaço.