Tuesday, November 10, 2009

Manifesto Slow-Talking

Conversando com amigos numa festa, quis anunciar minha saída do ambiente e minha defesa da suspensão da outra atividade em curso. Não lembro exatamente qual caminho minhas palavras percorreram para chegar aonde queria. Sei que foi longo o suficiente para que uma amiga exclamasse:

- Bernardo, sintetiza! Tudo isso pra dizer, ‘galera, encharquei’?

Ensaiei uma defesa, mas fui interrompido pelos apoios ao prosseguimento da outra atividade. A idéia ficou acesa na mente, mas sem poder vir ao mundo até agora, que decidi eleger este blog como maternidade. Ciente dos possíveis danos da cesárea ao que vem à luz, busco um parto normal, em sintonia com o que direi a seguir.

Os manuais da escrita pregam que um bom texto deve ser sintético, conciso, conseguir dizer o que se quer com o mínimo possível de palavras. Temos aí o princípio da edição de “cortar a gordura do texto” para aumentar seu impacto, como o fotógrafo que seleciona as 10 melhores fotos das 100 que tirou, evitando a diluição da qualidade do seu trabalho.

Um valor muito presente no nosso tempo, relacionado a essa objetividade da escrita, é a noção de que o melhor caminho entre dois pontos é sempre o mais rápido/curto. Se você pode ir de Recife a Porto de Galinhas em 1h por um caminho, porque diabos o faria em 2h por um caminho mais longo? Isso implicaria em mais gasto de dinheiro e tempo, dois eixos centrais de nossas vidas que muitas vezes se confundem, e sobre os quais tendemos a estruturar todos os outros aspectos.

Essa lógica se reflete mesmo em conversas entre amigos. As pessoas querem que quem fala vá direto ao ponto, como querem rápidos os deslocamentos, preparação de comidas, aprendizados, frutas maduras... Enfim, que todas as distâncias entre o desejar e sua realização sejam percorridas o mais rápido possível. Esperar virou um tormento.

Mas ninguém espera que o sexo ou a cerveja com os amigos dure o menor tempo possível.
Queremos que o que nos causa prazer demore, e todo o resto seja rápido. A questão é que essa ansiedade por rapidez faz com que muitas coisas que poderiam causar prazer não o façam. A viagem para Porto de Galinhas pode ser muito mais prazerosa pelo caminho mais longo. E uma conversa agradável pode ser composta de palavras percorrendo variados caminhos, sem pressa alguma de chegar direto ao ponto. A obrigação da velocidade restringe muito as possibilidades de prazer.

Minha mãe, por exemplo, é quase como a internet quando conta uma história: lá pela terceira frase abre um link para uma nova janela, onde detalha um bocado um aspecto da narrativa que a gente não sabe bem qual relação tem com o todo, inclusive porque o final ainda está a várias frases e alguns links de distância. Isso gera impaciência nos reféns da objetividade, dentre os quais eu muitas vezes me incluo. Quando, porém, eu relaxo e tento acompanhar seu hipertexto, sem pressa, deixando que ele se apresente naturalmente, nascendo de parto normal, muitas vezes me divirto com os caminhos que ele percorre, imprevisíveis e não-lineares como um bom improviso musical, como a vida.

Por tudo isso eu proponho, em sintonia com o movimento Slow-Food, o Slow-Talking: por conversas sem cesárea, porque devagar faz bem e é mais gostoso.

Wednesday, May 27, 2009

Divisas para quem precisa

O jovem rapper dispara sua arte. As legendas tentam dar conta das velozes rimas em turco, há uma clara sensação de perda de conteúdo para o espectador. Mas o que causa impacto não precisa de tradução: a cadência e o peso da levada do rapaz, com suas marteladas verbais precisas e vigorosas, sugerem a quantidade de energia investida no ato de cantar aquele rap, que termina com o suor escorrendo pelo pescoço do artista, e uma descarga de adrenalina percorrendo o corpo de quem presenciou o ato, mesmo distante no espaço e no tempo, através da mágica do cinema.

Atravessando a Ponte – O Som de Istambul, é um filme repleto de momentos musicais marcantes. Dirigido por Fatih Akin, um alemão de ascendência turca, o filme mostra o músico alemão Alexander Hacke em busca das diversas sonoridades produzidas na capital da Turquia. Desde as mais tradicionais, mais próximas do que tendemos a classificar como “música árabe”, até gêneros que nos soam mais familiares, como o rock, o rap e a música eletrônica. E, sobretudo, o filme mostra o diálogo entre esses dois pólos, e que novas formas de expressão surgem a partir daí.

Istambul, a antiga Constantinopla dos livros de História, é uma cidade dividida entre Europa e Ásia pelo estreito de Bósforo, divisa geográfica entre os dois continentes. Na abertura do filme, a banda local de rock psicodélico Baba Zula toca numa embarcação a navegar pelo Bósforo. Hacke participa do ato, cujo som incorpora temas turcos às bases de rock. É uma cena síntese da idéia que permeia todo o filme: o encontro do ocidente com o oriente a mostrar que essa linha divisória pode ser mais tênue do que imaginamos.

O filme mostra, através da música, como a linha-divisa-ocidente-oriente ganha ou perde força, nos dois lados: há as bandas de rock que fazem um som muito próximo do americano, há a cantora duma espécie de “fado turco” que se preocupa com a pureza do seu ritmo, que já foi perseguido por razões políticas. E há diversos artistas fazendo um som que bebe nas duas fontes, como o grupo de música eletrônica com flautas ciganas, ou o rapper cujo ritmo é totalmente diferente daquele com o qual estamos acostumados. Fica claro o quanto expressões culturais podem ser remodeladas, a partir da incorporação de novas referências, gerando obras diferenciadas de suas formas originais. Impossível não lembrar de Recife, onde ocorreu, com o Manguebit, um fenômeno parecido.

Atravessando a Ponte mostra que tanto o lado de lá quanto o de cá possuem muitas características em comum. Passado e presente, oriente e ocidente, o filme mostra como a cultura se nutre desses eixos, seja para reforçar suas divisas, seja para enfraquece-las. E, mais importante que essas linhas divisórias, é o talento, a qualidade da expressão. E isso, como o filme deixa claro, não conhece fronteiras.

Thursday, February 26, 2009

Civilidade alemã x amistosidade brasileira

Ao ser "presenteado" com a tradicional descortesia brasileira no trânsito, fiquei pensando na aparente contradição: no Brasil, as pessoas se relacionam de maneira muito mais amistosa do que nós países nórdicos, onde a frieza predomina. No entanto, nesses países há um respeito pelos direitos do próximo, que vai do dar passagem no trânsito às filas para entrar no ônibus, enquanto no Brasil prevalece a lei do cão: cada um por si, todos contra todos, e que vença o mais esperto.

Patrick, um português que morou no Brasil quando criancinha e reside há muito tempo na Alemanha, falou que a combinação de frieza e civilidade, característica dos países nórdicos onde tudo funciona, são consequências da mesma causa: racionalidade em excesso. Na Alemanha, as pessoas dão passagem no trânsito não porque são boazinhas ou porque se preocupam com os demais: o fazem por obediência às regras que asseguram que os direitos de um não incomodem o outro.

De acordo com Patrick, essa obediência às regras, que faz com que tudo seja como deve ser, nos mínimos detalhes, faz da Alemanha um país de excelência tecnológica e científica, onde o trabalho é eficiente e rende frutos, os serviços funcionam com extrema pontualidade, e as pessoas respeitam os direitos dos outros.

Porém, essa obediência às regras é tão inflexível que o meu amigo já presenciou um alemão esperar o sinal abrir para atravessar a rua, debaixo de uma chuva torrencial, às quatro da manhã, sem o menor sinal de carro nas imediações e nenhuma criança por perto para ser deseducada com o mau exemplo. Das várias vezes que o Patrick atravessou a rua em situação semelhante, teve que lidar com o patrulhamento civil dos outros alemães: "não está vendo que o sinal está vermelho?!". Em outra situação, Patrick estava tirando um som com amigos num parque grande o suficiente para que os vizinhos não fossem incomodados, mas às 10h da noite estava a polícia a acabar com a festa, porque é probido qualquer barulho a partir daquele horário.

O portuga-alemão acredita que cada um deveria poder fazer o que quiser, desde que não cause mal a ninguém. Atravessar a rua nas situações descritas não prejudica pessoa alguma. No entanto, os alemães se incomodam com qualquer desvio das regras de conduta, por menor que seja, por mais inofensivo que seja. Falta-lhes flexibilidade para reconhecer que, em determinadas situações, a obediência cega às regras simplesmente não faz sentido.

Por outro lado, permitir a desobediência às regras em casos justificáveis pode abrir margem para a desobediência em casos injustificáveis, como acontece no Brasil. "O bom-senso deveria guiar isso", afirmou minha namorada, mas essa é uma qualidade que nem todos compartilham, e que dá espaço para uma certa margem de variação. Afinal de contas, se todos tivessem bom-senso, e se esta qualidade fosse exatamente a mesma em todos, não haveria necessidade de lei alguma.

Mas o que mais incomoda o portuga-alemão é a inamistosidade germânica. Ele cansou de cumprimentar as pessoas no trabalho e ser ignorado. A frieza e a racionalidade são tão intensas que Patrick tem a sensação de viver numa sociedade de robôs. Há pouco espaço para o calor humano, o humor é seco, sem ironias, sem jogos de palavras, com as pessoas dizendo sempre exatamente o que elas querem dizer, utilizando a função referencial da linguagem o tempo todo.

Patrick afirma que há dois tipos de brasileiros (e latinos em geral, que compartilham um lado emotivo mais forte) na Alemanha: os que adoram o fato de que tudo funciona com perfeição, se adaptando bem, e os que não conseguem lidar com a ausência de calor humano, e ou vão embora ou permanecem infelizes. Segundo ele, há estudos indicando que o nível de felicidade do povo alemão é dos mais baixos do mundo (vou cobrar dele os links).

A grande questão é se é possível uma sociedade unir o melhor dos dois mundos: a disciplina, eficiência, organização e civilidade alemãs com a amistosidade, flexibilidade, improviso e calor humano brasileiros. Será que um alto desempenho numa dessas áreas implica num baixo desempenho na outra? Seria interessante se a sociedade brasileira atingisse os mesmos níveis de desenvolvimento cívico, econômico e social da sociedade alemã, para observar se esse progresso seria acompanhado da substituição das características do povo brasileiro pelas do povo alemão.

***
Links dos estudos sobre os níveis de felicidade nos diversos países:
http://www.le.ac.uk/users/aw57/world/sample.html
http://www.happyplanetindex.org/map.htm
http://www.technovelgy.com/ct/Science-Fiction-News.asp?NewsNum=893
http://www.worldvaluessurvey.org/

Monday, February 16, 2009

Espalhando a discórdia

Tim Maia, passada a sua fase Racional, renegou a obra-prima que tinha feito, num processo semelhante ao de Baden Powell, que renegou os seus afrosambas depois que se tornou evangélico. Eu defendia a tese de que é uma bobagem renegar obras-primas que você compôs, só porque seu atual sistema de crenças entra em choque aquele em vigor no momento da criação. Lili, minha namorada, defendia a tese de que é um direito deles renegar o que quiserem, e que bobagem é eu perder tempo julgando essas escolhas alheias.

A discussão se estendeu até a chegada da minha cunhada, que achou que nós estívessemos brigando, devido ao excesso de entusiasmo na defesa de nossas posições (e de uma certa dificuldade em assimilar a posição do outro, já que elas entravam em choque). Acabamos suspendendo a discussão, em prol da paz, do amor, e da harmonia familiar e conjugal, muito embora Lili insistisse em levar a discussão até o fim.

A situação tirou minha mente do mérito das obras renegadas, e a trouxe para o desprazer em discutir, um padrão muito comum, que eu tenho dificuldades em aceitar. Eu adoro discutir, acho uma excelente maneira de desenvolver as idéias, a capacidade argumentativa, de obter vários perspectivas sobre determinado assunto. Mas a maior parte das pessoas não gosta de discutir. Melhor dizendo: a maior parte das pessoas não gosta de discordar, como se o ato implicasse em ofensa, em chateação, ou mesmo mágoa.

Creio que isso ocorre por que tendemos a desenvolver um apego muito forte a nossas crenças e opiniões. Quando elas são atacadas, sentimos como se o ataque fosse dirigido a nós mesmos. É uma ameaça ao ego, que está sempre buscando por confirmações dele próprio, como conversar com pessoas de visão semelhante a nossa. O problema é que nossas crenças e opiniões, assim como nosso ego, precisam ser colocadas em xeque para se desenvoler.

Um argumento comum para evitar uma discussão é que ela não vai levar a lugar nenhum. Ora, o mero ato de expressar as idéias de forma persuasiva já leva a ativação de sinapses no cérebro, melhorando nossa cognição. E mesmo que permaneçamos com a mesma posição que tínhamos antes da discussão, há uma grande diferença entre a opinião que sobrevive aos questionamentos e a opinião que sobrevive por falta de questionamentos.

Muitas vezes o "vencedor" de uma discussão não é o que tem a posição mais coerente, mas aquele que melhor sabe defender sua posição, o que tem melhor capacidade argumentativa. É desagradável quando sabemos que estamos certos, mas não conseguimos traduzir essa certeza em argumentos fortes o suficientes para rebater os do "adversário". E quanto mais evitamos discutir, mais isso ocorre, por pura falta de treino.

Esse treino não deveria colocar em xeque nossas relações e vínculos emocionais. Lembro sempre das inúmeras discussões que tive com o ilustre Ferroso, discussões que muitas vezes se acaloravam muito além da conta, com os presentes achando que estávamos na iminência de sair no tapa. E nunca deixamos de ser grandes amigos por conta disso.

Ia fechar o texto com algo sobre um modelo de discussão cooperativo, em vez de competitivo. Soa muito mais proveitoso e convidativo. Ao mesmo tempo, o modelo competitivo está em todo lugar, e tenho minhas dúvidas em relação a validade de evitá-lo, ou a possibilidade de transformá-lo em cooperação. Sendo assim, prefiro reafirmar a bobice de Tim Maia e Powell em renegar suas obras-primas. Quem quiser que discorde.

Friday, January 30, 2009

Os tons da capa da velha da capa preta

No caminho para o trabalho, eu e minha mãe ouvimos a rádio CBN. Salvo quando as notícias são chatas, ou uma entrevista é monótona, casos em que recorremos à rádio Universitária. Ontem, pouco depois da mudança de estação, estávamos ouvindo a música do pai herói, do Fábio Júnior. Ficamos em silêncio, prestando atenção... Eu me dividia entre a bregosidade da melodia, do tom, e alguns trechos interessantes da letra. Segundos após o termino da música, recebo pelo celular a notícia de que meu avô, pai da minha mãe, falecera. Poucas vezes tive uma sensação tão forte de sincronicidade, as coincidências significativas de que falava Jung, e pude ver que isso foi bem mais intenso na minha mãe.

Eu e meu avô materno nos víamos muito pouco, separados por desencontros familiares. Há cerca de um ano se deu a partida de meu avô paterno, a quem eu também via muito pouco, afastado pela distância geográfica. Com ambos senti falta de uma despedida, de uma boa lembrança recente. Por outro lado, nossa pouca interação permitiu que eu encarasse a perda de ambos com mais serenidade, com menos do sofrimento que resulta do maior apego, geralmente proporcional à presença das pessoas que partiram em nossas vidas, ou à intensidade dos momentos compartilhados com elas.

Ao perceber que não sofria tanto com as perdas, senti uma culpa nos momentos iniciais: existe um valor em nossa cultura que relaciona o quanto sofremos com o quanto amamos a pessoa que partiu. Era como se eu não amasse meus avôs tanto quanto deveria, como se fosse um neto ingrato por não sofrer tanto com a partida de ambos.

Ao contar que, apesar de gostar muito dela, não derramou uma lágrima com a partida de sua bisavó, minha namorada me ajudou a perceber que não havia razões para culpa. O sofrimento com a partida se relaciona a outros fatores além do apego (cabe aqui mencionar o conceito de amor desapegado, presente na filosofia budista), como a naturalidade da circunstância da morte, e a naturalidade com que se encara a morte em si.

O poetinha Vinícius dizia que a vida é uma só, que ninguém o convenceria que há mais de uma sem mostrar-lhe um documento assinado por Deus, com firma reconhecida. Cada vez mais eu acredito que há algo de nós que transcende a matéria e retorna a esse plano inúmeras vezes. Fico com BNegão: “na real, a gente é como o sol... não nasce nem morre, só sai do campo de visão normal”. Não dá pra saber qual dos dois está correto, e se essa correção é uma questão de fé ou (des)conhecimento. Mas dá pra afirmar, sem a menor sombra de dúvida, que a abordagem do filósofo do rap ajuda a encarar as chegadas da velha da capa preta com muito mais serenidade.