Sunday, May 30, 2021

Para C.M

 

Para C.M.

    "O desejo está lá, onde eu não estou". Após encontrá-la, esta frase lhe martelava a cabeça. No momento em que ela entrou no Uber, ele percebeu que uma vida ia embora. Uma vida a dois, com ela. Uma vida que ele levou, que eles levaram, por um ano. Uma vida com a qual ele decidiu romper.

    Para quê? Em nome do quê? Ele não estava feliz ao lado dela. Se percebia desejando interagir com outras pessoas. Quando os dois saiam juntos, ele se apagava em introspecção. Ele não curtia mais a presença dela, idealizava a solidão, a liberdade que a acompanha. O desejo lá, onde ele não estava.

    Ele correu atrás do seu desejo. Saiu da casa, saiu da vida dela, deixando um vazio enorme, para ambos. Um vazio que ela vivenciou como perda, ele como ganho: desapareciam as restrições da vida a dois, que o impediam de fazer o que queria. Agora ele estava livre.

    Ele fez o que quis. Voltou à boemia, que tanta falta lhe fazia. As interações aleatórias da night o divertiam. Na terapia, ele tentava se convencer de que tinha tomado a decisão certa. Ele tinha sido honesto consigo mesmo, e com ela. Se ele não conseguia curtir ao lado dela, era sinal de que não a amava. Não o suficiente para construir uma vida juntos.

    Ainda assim, já separados, ela voltava aos seus pensamentos. As músicas que ela lhe mandava o faziam chorar. Os presentes que ela lhe dera, o que ela deu mesmo depois da separação, todos revelando o zelo, o quão bem ela o conhecia, o quão bem ela lhe queria. Ele não tinha dúvidas de que ela o amava muito. Ele se sentia culpado por não conseguir retribuir à altura.

    Ele tem um grau altíssimo de miopia, um grau alto de astigmatismo. Enxerga mal, tanto o que está longe, quanto o que está perto. O que está longe, ele idealiza positivamente. O que está perto, ele analisa negativamente.

    Quando estava com ela, os defeitos dela lhe saltavam aos olhos, e aos ouvidos. Ele se incomodava com pequenas falhas dela ao se expressar, com os deslizes do inglês dela, com o fato dela entender, mas não falar, francês. Lamentava a falta de inclinações artísticas da parte dela. Lamentava ela não querer dançar reggae ou rap no quarto com ele. 

    A distância, e o tempo, colocam as coisas em perspectiva. O inglês dela lhe valeu um cargo numa multinacional, o pai dela terá que se esforçar muito para encontrar defeitos no seu novo trabalho.

    Mas o que mais mexeu com ele, quando a viu entrando no Uber, para, talvez, nunca mais voltar à sua vida, foram as respostas que lhe vieram para a pergunta: qual liberdade ele quer seguir? A liberdade para correr atrás de desejos, que o levam a repetir padrões, que não o levam a lugar nenhum? Ele quer estar livre das restrições da vida a dois, da vida com ela, para... para quê? Para se dedicar a sua arte, aos seus estudos? A vida deles não era empecilho para isso, pelo contrário. 

    Ou ele quer a liberdade para se dedicar à boemia, para viver, milhares de vezes, a mesma night? O que ele está procurando? A boemia é o lugar certo para encontrá-lo?

    A resposta a todas essas perguntas o levou a escrever esse texto e dedicá-lo a ela, preservando sua identidade. Entendedores entenderão, mas o mais importante é que ela entenda. E o perdoe, pela sua confusão. É difícil ver as coisas claras quando não se enxerga bem.


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