Monday, February 16, 2009

Espalhando a discórdia

Tim Maia, passada a sua fase Racional, renegou a obra-prima que tinha feito, num processo semelhante ao de Baden Powell, que renegou os seus afrosambas depois que se tornou evangélico. Eu defendia a tese de que é uma bobagem renegar obras-primas que você compôs, só porque seu atual sistema de crenças entra em choque aquele em vigor no momento da criação. Lili, minha namorada, defendia a tese de que é um direito deles renegar o que quiserem, e que bobagem é eu perder tempo julgando essas escolhas alheias.

A discussão se estendeu até a chegada da minha cunhada, que achou que nós estívessemos brigando, devido ao excesso de entusiasmo na defesa de nossas posições (e de uma certa dificuldade em assimilar a posição do outro, já que elas entravam em choque). Acabamos suspendendo a discussão, em prol da paz, do amor, e da harmonia familiar e conjugal, muito embora Lili insistisse em levar a discussão até o fim.

A situação tirou minha mente do mérito das obras renegadas, e a trouxe para o desprazer em discutir, um padrão muito comum, que eu tenho dificuldades em aceitar. Eu adoro discutir, acho uma excelente maneira de desenvolver as idéias, a capacidade argumentativa, de obter vários perspectivas sobre determinado assunto. Mas a maior parte das pessoas não gosta de discutir. Melhor dizendo: a maior parte das pessoas não gosta de discordar, como se o ato implicasse em ofensa, em chateação, ou mesmo mágoa.

Creio que isso ocorre por que tendemos a desenvolver um apego muito forte a nossas crenças e opiniões. Quando elas são atacadas, sentimos como se o ataque fosse dirigido a nós mesmos. É uma ameaça ao ego, que está sempre buscando por confirmações dele próprio, como conversar com pessoas de visão semelhante a nossa. O problema é que nossas crenças e opiniões, assim como nosso ego, precisam ser colocadas em xeque para se desenvoler.

Um argumento comum para evitar uma discussão é que ela não vai levar a lugar nenhum. Ora, o mero ato de expressar as idéias de forma persuasiva já leva a ativação de sinapses no cérebro, melhorando nossa cognição. E mesmo que permaneçamos com a mesma posição que tínhamos antes da discussão, há uma grande diferença entre a opinião que sobrevive aos questionamentos e a opinião que sobrevive por falta de questionamentos.

Muitas vezes o "vencedor" de uma discussão não é o que tem a posição mais coerente, mas aquele que melhor sabe defender sua posição, o que tem melhor capacidade argumentativa. É desagradável quando sabemos que estamos certos, mas não conseguimos traduzir essa certeza em argumentos fortes o suficientes para rebater os do "adversário". E quanto mais evitamos discutir, mais isso ocorre, por pura falta de treino.

Esse treino não deveria colocar em xeque nossas relações e vínculos emocionais. Lembro sempre das inúmeras discussões que tive com o ilustre Ferroso, discussões que muitas vezes se acaloravam muito além da conta, com os presentes achando que estávamos na iminência de sair no tapa. E nunca deixamos de ser grandes amigos por conta disso.

Ia fechar o texto com algo sobre um modelo de discussão cooperativo, em vez de competitivo. Soa muito mais proveitoso e convidativo. Ao mesmo tempo, o modelo competitivo está em todo lugar, e tenho minhas dúvidas em relação a validade de evitá-lo, ou a possibilidade de transformá-lo em cooperação. Sendo assim, prefiro reafirmar a bobice de Tim Maia e Powell em renegar suas obras-primas. Quem quiser que discorde.

4 comments:

Unknown said...

Meu amigo, a fronteira entre defender as próprias opiniões e defender a si próprio, que você menciona no seu texto, o que envolve, também, as relações entre o discurso político, as ideologias, os arcabouços legais e as práticas cotidianas, é simplesmente uma das temáticas mais relevantes que existem no mundo.
Acredito eu que compreendê-la, em profundidade, e bem difundir essa compreensão mais aprofundada, justifica de sobra um prêmio Nobel da Paz.
Quando uma pessoa se mata em nome da religião, por exemplo, está defendendo uma opinião com a própria vida.

Obrigado pela brilhante exposição!

Abraço,

Silvio.

Anonymous said...

Ainda tem também os que renegam obras que nem são tão primas assim. Acabam gerando conflitos também...

Los Hermanos nunca conseguiram superar a "obra prima" Ana Júlia. Vai ver a banda acabou por não superar as próprias frustrações de ter baseado sua história, mesmo que involuntariamente, numa música boba.

Sei lá.... Eles podiam até renegar pesadamente a música, mas não sei se na pratica funcionaria.

Na verdade não funcionou, né?

Mandrey said...

Bernardo,

Platoniando em direção ao Mito da Caverna, você tem sorte em não ser apedrejado até a morte. Discordar é preciso, por isso concordo contigo (isso sim é um paradoxo!)

Belisa Parente said...

Na verdade Tim Maia não renegou a obra, mas sentiu-se enganado por Jacinto Coelho, o fundador da seita Universo em Desencanto, por motivo monetário, diga-se de passagem. Enfim, o melhor é que tanto os discos de Tim quanto os volumes do ‘Universo em Desencanto: Imunização Racional’ são lindos. Acho que devemos olhar o lado bom da coisa sempre, e ficar atento as manipulações de toda ordem, é claro. É aí que as discussões tornam-se mais importantes ainda - quando propiciam a troca de conhecimentos, nos dando oportunidade para analisar a questão com focos diversos. É por isso que é importante saber ouvir. Só assim poderemos ultrapassar o simplismo das opiniões formadas que não servem para nada, que não chegam a lugar nenhum, e conseguirmos propor algo louvável com nossas discussões.