Sunday, September 16, 2007

Brincadeira e personagem

O controle da respiracao. Quando crianca, ele gostava de brincar com as diversas maneiras do ar entrar pelos pulmoes. Tudo comecou com as aulas de natacao, e as competicoes para ver quem passava mais tempo debaixo d'agua. Era otimo se desconectar do mundo por alguns instantes, flutuando na agua e nos pensamentos que comecavam lentos e iam acelerando, a medida que o tempo sugava o oxigenio dos pulmoes. A calmaria despejada pela urgencia de ar, contagens ate 10 em menos de dois segundos, diversas vezes, ate os musculos respiratorios comecarem suas contracoes involuntarias, uma vez, duas vezes, tres vezes, e o corpo nao podia esperar mais um milesimo de segundo sequer para ser invadido pelo ar. E que ar! Nao ha inspiracao mais prazerosa do que aquela que espera o quanto pode para acontecer. Sentir o pulmao dilatando, como um saco plastico soprado com forca, e por alguns instantes nao ha mundo, nao ha mente, nao ha nada alem de ar penetrando pulmoes, produzindo um orgasmo respiratorio.

Na adolescencia, ele passou a brincar com os estados de espirito. Se podia controlar os pensamentos que por sua vez davam origem aos sentimentos, era possivel escolher o que sentir, ele lera num livro de auto-ajuda, e aquilo fez um sentido enorme. Comecou a brincar com a construcao da identidade, escolhendo caractersiticas que gostaria de incorporar atraves das escolhas do pensar/sentir, como se fosse um personagem de RPG. E durante algum tempo, ele era exatamente quem queria ser, e um monte de gente queria ser como ele, era o que ouvia de vez em quando, e aquilo trazia uma vaidade enorme. Se sempre se sentira diferente da maioria, a diferenca agora parecia ser superioridade, sentimento bem diferente do que experimentava ao ser escolhido por ultimo para os times da Educacao Fisica, poucos anos antes, mas que pareciam bem distantes dessa epoca dourada. Agora a sociabilidade e o intelecto funcionavam tao bem que a inaptidao nos esportes nao incomodava mais. Quando questionado se jogava bola, respondia que isso e coisa para atleta. "E voce e o que?" "Sou boemio!", afirmava risonho, fazendo os outros rirem junto com ele.

A vaidade trouxe outro tipo de brincadeira: provocar reacoes nas pessoas. Quando percebeu que conseguia ganhar a maior parte das discussoes, mesmo estando errado, ficou viciado no brinquedo. Logo descobriu que, as vezes, argumentos nao sao a melhor forma de levar os outros a agir ou sentir o esperado. Passou a brincar com a linguagem corporal, aprendendo o quanto um sorriso, um tom de voz, um toque ou um olhar podem produzir efeitos inalcancaveis pelo verbo.

Chegou um momento em que a brincadeira ficou seria. Parte do processo era antecipar as reacoes das pessoas, ler o que estava sendo comunicado nao-verbalmente. Um dia essa etapa passou a ter muito mais a ver com a imaginacao dele do que com a realidade, fenomeno tambem conhecido como paranoia. Comecava a desconstrucao do personagem, a identidade desejada dando lugar a uma nova pessoa, algumas caracteristicas desaparecendo, outras retornando. Era um processo do qual nao tinha controle, com o qual nao podia brincar, e que levou um longo tempo para se habituar com seus efeitos.

Hoje, ele sente saudades do seu personagem, e de vez em quando tenta reaver algumas de suas qualidades, quase sempre sem muito sucesso. Mas vive bem melhor agora, moderando a vaidade e as brincadeiras. Identidade, afinal, e muito mais descoberta do que construcao. E personagens funcionam melhor na ficcao.

3 comments:

Anonymous said...

Não se esqueça de me trazer um pouco de licor de cacau belga e um chapéu (belga? Holandês?) estilo Chico Science.

Silvio.

Anonymous said...

Êta! parece que o bicho tá pegando.... cadê os textos, as fotos? bjka

Anonymous said...

Êta! parece que o bicho tá pegando.... cadê os textos, as fotos? bjka