Thursday, March 15, 2007

Tempo e cigarros

Astolfo e Olarico caminhavam sem destino. Era um bom programa de fim de tarde; bairro tranquilo, poucos carros, alguma brisa. Astolfo parara de fumar há alguns meses; Olarico continuava sem perder a oportunidade de soltar fumaça com gracinhas.

- Desde que tu parou de fumar que tás assim, nessa apatia de anta paralítica.

- Claro, lascar meu organismo pra nada me dava uma energia indescritível.

Olarico tragou forte, e fez aquela cara de sabedor dos grandes segredos, que todo fumante faz:

- Essa é a questão, você não tava nem aí se dentinho ia amarelar, ou se pulmão ia ficar pretinho, nem pensava no câncer ou no efisema. Você era um fumante despreocupado e divertido, agora é um ex-fumante preocupado e apático. Que progresso, heim?

Era por coisas como essa que Astolfo tinha grande consideração por Olarico, o rei dos contrapontos divertidos.

- Minha apatia não tem nada a ver com cigarro, meu caro. Tem a ver com onde estou, e onde deveria estar, e não saber onde quero estar.

Olarico deu outra profunda tragada, prenúncio de outra "grande verdade", mas calou-se. No fundo se sentia como o amigo, embora não curtisse muito conversar sobre isso. Preferia pensar a respeito sozinho, com tragadas profundas, mas sem grandes verdades.

Astolfo continuou: - Sabe quando você olha para quem você era há oito anos, e sente vontade de voltar a ser aquele cara? Isso é normal acontecer - quando se tem cinquenta, pensando nos vinte e poucos.

- Eu diria que há oito anos você não tava nem aí se era normal ou não. Aliás, a maior parte das pessoas diria que não.

- É, eu sei, mas não é esse o ponto. O lance é o entusiasmo, a paixão pela vida, que era imensa há oito anos, e hoje mal levanta uma caneta. Não deveria ser assim. Era para eu estar no auge agora, nos meus vinte e poucos.

- Talvez você tenha vivido seus vinte e poucos há oito anos, e agora se encontre em plena crise da meia idade.

- E o que me aguarda depois disso?

Olarico acendeu outro cigarro: - Sei lá. A cova?

- Pra essa você vai na frente, com sua chaminé.

- É melhor queimar do que apagar aos poucos.

- Última frase do bilhete suicida de Kurt Cobain.

Olarico deu outra tragada forte: - É, mas a frase é de uma música de Neil Young, que continua vivo e cantante.

- Eu sei disso... Há oito anos que eu sei disso.

- E há oito anos que eu peguei seu Nevermind emprestado, sem sua permissão, e nunca devolvi.

- Disso eu não sabia.

- Pois é. Tem coisas que é melhor não saber.

3 comments:

Anonymous said...

Que papo nostálgico. Mas muito bom de ler!

Só não me dê novamente a frustração de acessar todo dia este blog e só ver post uma vez por mês.
(brincadeirinha)

Abraço,
Silvio.

Anonymous said...

Gosto da idéia de criar personagens pra falar de si mesmo, de finais simples e inusitados também.

Laura said...

Isso é apenas um comentário cretino sobre o comentário de Cejoca:

HAUHAUAHAUAHAUAHAUAHAUAHA
(crise de riso)

P.s.; "Anta paralítica" foi fantástico, quase como "foca mongol".